Cavando Ideias – Valéria Scornaienchi em AIRE
Arte com Indígenas em Residências Eletrônicas
Cavando Ideias – Valéria Scornaienchi em AIRE. Valeria Scornaienchi é uma amiga e artista maravilhosa. Aliás, já era uma artista maravilhosa quando eu a conheci em seu ateliê em Campinas e pude participar como ouvinte de um grupo que no período estudava com outra amiga talentosa, artista e professora do Instituto de Artes na Unicamp, Sylvia Furegatti. Fui aluna da Sylvia em 2015, momento em que fui apresentada a várias teorias e artistas incríveis, sempre focada na arte pública e urbana.
Sylvia me levou ao ateliê de Valeria, comentando seus talentos: grande pintora, que depois de vender inúmeros quadros em galerias, resolveu conhecer melhor a arte contemporânea. Desde, então, passou a liberar a criatividade e ampliar a utilização de inúmeros materiais, com várias exposições por Campinas. Conhecendo melhor a Valéria, inclusive fazendo algumas visitas ao seu ateliê, pude conhecer um pouco de suas motivações, bem como sua enorme curiosidade na exploração de diversos materiais. Professora de Educação Física e Fisioterapeuta de formação, Valéria sempre leu, fez cursos, oficinas e procurou conhecer mais a fundo de que se tratava a arte contemporânea.
Pessoa de muita experiência e generosidade, Valéria tanto oferece oficinas, como tem um grupo de trabalho e faz atendimentos e orientações individuais. Algumas de suas alunas já expuseram ao redor do Brasil e foram selecionadas para exposições e prêmios. São várias artistas assim que recebem ou receberam suas orientações, tantas que eu não saberia nomear. E por isso peço desculpas, apenas citando os nomes das quais convivi por mais tempo.
Pessoa amável e otimista, Valéria conhece todos os artistas da cidade, onde circula com alegria e empatia. Nunca lhe perguntei, mas acredito que uma artista do seu quilate só não extrapolou os limites do país porque, com certeza, sua família vem em primeiro lugar. Mas a potência de seu trabalho certamente a faria muito reconhecida e respeitada, tamanha dedicação e profundidade com que se dedica à criação artística. Acrescento em tempo, que Valeria Scornaienchi já participou de algumas exposições em São Paulo, Cuba e Portugal. Justifico que não procurei detalhadamente estes dados.
Devido a todas estas virtudes e a amizade com que trata as pessoas, convidei Valéria para uma Live no Instagram, que ocorreu em 02 de abril e foi uma conversa deliciosa, no Instagram. Conversamos inclusive sobre suas crenças espiritualistas e como vê a construção de um novo e melhor mundo a partir do momento em que as pessoas passarem a valorizar as pequenas coisas, o pequeno comerciante, o padeiro que devido ao isolamento social e à pandemia leva os pães até em casa e buzina para que o identifiquemos. Deste modo, as pequenas coisas foram se modificando. Uma delas seria inclusive optar por comprar legumes, verduras e frutas de alguns volantes que passam produtos de agricultura familiar. Enfim, conversamos sobre um futuro possível e melhor, integrando a todos os seres, animais e humanos. Respeitando a Terra como um planeta- mãe de todos os seres vivos que a habitam.
Na ocasião, Valéria mencionou o tanto que estava aprendendo ao participar de uma residência artística iniciada em janeiro de 2021 sendo concluída no dia 20 de abril, com exposição de obras de criação coletiva. Inteirando o leitor do contexto, é sobre o produto desta residência, como confirmação de suas crenças, filosofia e motivação artística que vou tratar de modo mais específico.
AIRE: Arte com Indígenas em Residências Eletrônicas foi um projeto incrível que reuniu povos indígenas das etniasMapuche; Mocovi; Tulián; Xukuru, Terena; Desana, Kariri-Xocó; Kaingang, Guarani, Palta entre outras. E recebeu participação de artistas do Brasil, Chile, Argentina, Equador e Bolívia. E como povos tão diversos, de língua diversas se comunicaram: com a linguagem da empatia, da fraternidade e da arte. Teve o envolvimento de músicos, poetas, escritores, ilustradores, fotógrafos, desenhistas e videastas (criadores ou realizadores de obras em video) interagindo e criando em sintonia.
Sigo a Valéria no Instagram, aplicativo em que divulgou parte do trabalho cocriativo realizado nesta residência. E além das imagens maravilhosas identifiquei a presença dos quatro elementos: terra, água, fogo e ar. E lembrei de algumas palavras de Gaston Bachelard sobre poética, inconsciente, criação, linguagens e manifestações artísticas: “A vontade é mais bem administrada por um devaneio que une o esforço à perseverança, por um devaneio que já gosta dos meios independentemente do seu fim.” (BACHELARD, 2019, p.79) Todo trabalho desenvolvido nesta residência foi interessante. Porém, quero falar melhor de três trabalhos, o vídeo : Sueño Profundo com 2:03’ de duração. Composto por fotografias fornecidas pelos artistas Anna Carolina Barros Campagnac; Ângela Berlinde; Aruma; Carina Dessana; Coletivo Kókir- Sheilla Souza e Tadeu dos Santos Kaingang; Shiraigo Lanche e Valeria Scornaienchi. E imagens trabalhadas com o programa Deep Dream por Aruma; animação de Naine Terena e aruma; áudio de Shiraigo Lanche e Edição de Aruma. A composição das imagens bem como a animação nos leva a reconhecer a estabilidade da terra, com a presença plantas e sua textura; o fogo com seu movimento e vermelho de chamas crepitantes; a leveza do sopro aéreo; bem como a fluidez da água.
Este vídeo nos leva para um ambiente de sonho? Creio que sim, mas também funciona como metáfora do movimento constante de tudo o que vive. E não apenas existe movimento, como se trata de um envolvimento das pessoas, dos seres vivos, das cores, da Terra, enquanto mãe: poder feminino que nos abarca a todos. Sueño Profundo deixa clara a proposta de que todos somos um, que precisamos nos envolver e unir a fim de mantermos a vida sobre o planeta. Já notei que neste momento em que a morte nos envolve e limita, como a última fronteira da vida; a união dos seres, seu respeito e amor, ficam cada vez mais fortes como a grande e única proposta para mantermos nossas existências.
Este vídeo, assim como o vídeo Atucse, possui imagens produzidas pela Valéria Scornaienchi, que divulgou no Instagram e nos envolveu, com suas mãos mexendo nas sementes de ervas medicinais numa bacia de água, mostrando um grande toque: “As duas mãos aparecem em seu respectivo privilégio: uma tem a força, a outra a destreza.” (BACHELARD, p.36) A esta imagem fazemos referência ao quadro Criação do Homem, de Michelangelo Rafael Sanzio (1483-1520), enfatizando a importância das mãos. Valéria em sua cena, grava suas próprias mãos mexendo nas ervas medicinais, ao mesmo tempo em que destaca, o envolvimento do ser humano com a terra, as plantas e a cura, a plantação, o resgate da natureza já tão destruída.
Atucse além de imagens maravilhosas, possui trilha sonora formada pela pronúncia do que se assemelha a fonemas indígenas que fazem as mulheres. Lembro que na nossa Live no Instagram, realizada em 02 de abril, Valeria comentou o trabalho com a sonorização das letras da língua e como esta experiência a fez despertar para um som mântrico, meditativo, produzido pela voz feminina. Valéria também destacou a vez de voz que a mulheres têm lutado para conquistar há séculos, bem como seu poder criativo e sua força. Explico que o áudio deste vídeo foi formado pela voz de indígenas e não indígenas de forma invertida, ou seja, os participantes começaram a ler suas vozes do fim para o início das palavras.
Finalmente, destaco El Despertar, um vídeo de 3:50’, com movimentos ritualísticos performatizado por Shiraigo Lanche, o qual fala da doença em que está imersa a humanidade e como a mesma precisa despertar para ver e deixar o mundo com novos ares. Eis a proposta reunida nesta imagem maravilhosa, da qual uma das fotografias se encontra abaixo. Nela percebemos o sopro dos ventos e a mudança dos ares, que leva tudo para longe. Estas imagens trazem aos observadores a esperança de que os momentos difíceis vão passar, novos ares chegarão e nosso planeta será renovado, por uma nova espécie de seres humanos mais integrados ao planeta Terra e aos outros seres vivos.
AIRE – Arte com Indígenas em Residências Eletrônicas vem com uma nova proposta. É a arte que se adianta a um novo plano de vida. Eis o que Valeria Scornaienchi tem a nos ensinar com suas propostas e experiências artísticas. Confiram e abram os olhos para perceberem um futuro melhor à espera daqueles que modificam suas atitudes em pequenas coisas. A vida imita a Arte e a Arte imita a vida. Vale a pena conhecer os trabalhos de cocriação da residência. Tudo pode ser conferido nos vídeos indicados nesta matéria, assimcomo na exibição AIRE
Referências de Cavando Ideias – Valéria Scornaienchi em AIRE
BACHELARD, Gaston. A Terra e os Devaneios da Vontade: Ensaio sobre a imaginação das forças. São Paulo, Martins Fontes, 2019.
Página de links e conexões com a Valeria Scornaienchii
Cavando Ideias – Valéria Scornaienchi em AIRE é o texto desta semana na coluna de Silvia Ferreira Lima.