Cavando Ideias: Filha 7 e as memórias de Marli Soares
Livro filha 7 : reúne memórias de Marli Soares e o trabalho artístico e editorial de Keila Knobel
“Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver no Universo…
Por isso a minha aldeia é tão grande como outra terra qualquerPorque eu sou do tamanho do que vejo
E não do tamanho da minha altura…”
Alberto Caeiro In PESSOA, F. O Guardador de Rebanhos, In Poemas de Alberto Caeiro. Lisboa: Ática. 1946 (10ª ed. 1993). p. 32
Cavando Ideias: Filha 7 e as memórias de Marli Soares
Começo com a citação de Alberto Caeiro, ou melhor, de Fernando Pessoa enquanto este heterônimo, para comentar como a experiência do indivíduo guarda semelhanças com o geral humano. Foi assim que eu me senti lendo o livro Filha 7 de Marli Soares, editado e ilustrado por Keila Knobel, sua sobrinha.
Keila Knobel colocou o projeto de confecção do livro de memórias de família, cuja história foi genialmente escrita pela tia, a sétima filha de oito irmãos, com uma narrativa inusitada, que mistura os focos narrativos de primeira e terceira pessoa, deixando marcas de objetividade ao contar sua história, ao mesmo tempo em que deixa marcas de sensibilidade e drama, ao viver a personagem.
As primeiras páginas lembram a narrativa de uma criança, como O Meu Pé de Laranja Lima de José Mauro de Vasconcelos, uma obra publicada em 1968 que virou um best-seller, com tradução e publicação pelo mundo.
Esta primeira pausa foi apenas para sugerir que a história prende desde as primeiras páginas, em que uma criança conta a história de sua família sob seu ponto de vista. Mas esta narradora-criança vai crescendo e mudando a perspectiva da própria história: de uma criança sozinha e incompreendida até uma mulher adulta, à procura da própria felicidade.
A escritora narra vários momentos difíceis em sua vida, quando a depressão e a paralisia pareciam tomar sua vontade de viver. No entanto, teve ajuda dos irmãos, cujos nomes não são mencionados. Então, o leitor imagina que se trate da sequência de nascimento na família. No entanto, também pode ser entendido como a ordem na apreciação, ou no carinho da própria narradora; a qual em nenhum momento os nomeia, nem a ela nem a qualquer um da família. Conta apenas as dificuldades que todos enfrentaram durante a vida, claro que com o foco voltado para os sentimentos e envolvimento da própria narradora.
Sua escrita parece racional, ao mesmo tempo em que parece emocional. Ou somos nós, leitores, que mergulhamos no seu texto e o lemos até o final, sentindo cada dor, cada alegria, cada novo golpe de esperança ou desesperança. A verdade é que somos tomados pela narração e por toda gama de sentimentos que o próprio eu-lírico nos expressa.
Nas últimas folhas do livro, Marli Soares admite que tem sofrido de depressão e ansiedade por toda a vida, por isso demorou a se equilibrar com fortes momentos de paralisia diante dos problemas. Seu depoimento é sensível e consolador; narra como passa por dificuldades e muitas vezes pensa que não terá forças para seguir em frente, mas apenas segue. Para isso, conta sempre com o apoio e o afeto dos outros irmãos e irmãs nessa lista de oito.
E finalmente conta com o apoio da sobrinha, Keila Knobel; que pesquisa sobre edição e ilustração de livro, usa colagem e impressões feitas com folhas, flores e plantas, das quais aprende a obter tinta natural para imprimir. Faz a capa, contracapa e costura artesanalmente. Keila faz as imagens, o projeto gráfico e a edição; para o que conta com a coedição e revisão de Silvia Prevideli, com impressão e acabamento na Gráfica Águia, com uma tiragem de 300 exemplares, financiada pelo projeto Catarse, do qual participei comprando um exemplar, que está comigo agora, de cujas fotografias surgiram.
A história de Marli é um exemplo e ao mesmo tempo um consolo. Afinal, quem já não sofreu dificuldades tão profundas como as que Marli Soares relata? De uma forma ou de outra, todos passamos pelas mesmas coisas. Logo, acabamos nos identificando com sua experiência.
Tive o prazer de seguir @keilaknobel no Instagram e convidá-la para uma Live, em 16 de abril. Quando começamos conversando sobre seu trabalho de impressão e livros de artista com plantas. Gentilmente ela aceitou o convite e conversamos bastante sobre suas referências intelectuais, imagéticas e artísticas. Além de sua experiência de vida, que tem bastante relação com todo este trabalho.
Uma ocasião, em outra live me perguntaram que escritor ou artista eu gostaria de ser, ou que trabalho eu gostaria de ter feito. Sempre achei uma pergunta complicada, mas este trabalho de editar e publicar um enredo tão bonito, num livro tão bem feito, baseado nas experiências e memórias familiares, seria algo que me daria muita realização. E talvez _ por que não? _ eu ainda gostaria de fazer o mesmo com as memórias da minha família. Eis o que todos temos necessidade de fazer em algum momento: transformar tantas memórias felizes e dolorosas numa obra de arte.
Esta possibilidade, encontrada no trabalho de um artista, é o que eu considero mais essencial na produção de alguém. Eis o objetivo do trabalho de um arteterapeuta: levar a cura para dores e sofrimentos através da arte. Creio que está nos objetivos da Marli, assim como nos objetivos da Keila. Muitas imagens do livro são trabalhos de colagem com fotografias e recortes de álbuns de família.
Keila contou que teve formação em Fonoaudiologia e que exerceu a profissão por vários anos. Até que a dor de perder seu pai, logo no início da pandemia, foi o que mais lhe marcou; além da frustração de não seguir a carreira acadêmica, como ela pretendia. No final, abriu mão do consultório e montou um ateliê, onde exerce seu trabalho artístico: de impressão, colagem e montagem de livros de artista.
Ela começa contando de um curso que fez no grupo Ramificações com a Valeria Scornaienchi (já citada em artigo anterior), em Campinas, quando discutiram quem somos nós, qual a nossa linguagem enquanto artista e o que eu proponho com o meu trabalho. Para isso, Keila fotografou em seu ateliê: livros e plantas; o que mais a tem caracterizado ultimamente, organizou sobre a mesa suas referências: as coisas que busca e o que ela produziu.
Conta que tem referências muitos fortes daquilo que ancorou sua infância. Uma referência de mundo, afetos, imagens, muito voltada para memórias, dos anos 70 e 80. Já publicou um livro Memorabilia com trechos de memórias e imagens compostas a partir de memórias. Confessa que neste livro há imagens de memória, aceitando suas referências, como paisagens rurais, fotos em preto e branco, trabalhos artesanais com figurinhas e plantas. Conta como imagens da Revista National Geografics marcou sua vida.
Considera que a falta de referências artísticas de alguma maneira também foi importante porque abriu espaço para referências internas e fantasias, que são coisas que aparecem agora. Foi perguntada sobre seu trabalho com as plantas como uma forma de manter a vida. Confessou que trabalha intuitivamente e sempre que tenta impor alguma coisa, isso não funciona. Comenta que durante anos sofreu do que chama de cegueira botânica, ou seja, não via diferença entre as plantas, nem as identificava.
De alguns anos para cá, começou a fotografar plantas que brotavam de bueiros e rachaduras de paredes. Tem uma coleção enorme destas fotografias. Então, interpretou como uma resistência de vida, de se manter, apesar de durezas e rachaduras, como as dificuldades ou resistências que a própria Keila encontrou na vida. Comenta que principiou com isso a partir do início da pandemia em março de 2020, quando da morte de seu pai.
Então, começou este período de reclusão e passou a fazer impressão botânica e cianotipia, nas suas palavras, tudo partiu da necessidade de contato com aquela vida que se mantinha apesar das dificuldades. Narra que a partir do dia das mães de 2020, ganhou um curso on-line de impressão botânica, do qual começou a gostar muito e que marcou seu trabalho a partir disso.
Então, começou a fazer um curso de tinturaria e a fazer extração do material das plantas, para as colorações. Começou a reparar no formato das folhas e descobrir quais tinham mais potencial tintório do que outras. Passou a observar as plantas, matos e árvores perto de onde mora e agora leva uma tesoura e fica observando as plantas, escolhendo e cortando pedaços de onde passa para extrair pigmentos e fazer tintas.
Detalhou como tinha uma clínica de fonoaudiologia e seguia a carreira acadêmica. Mas teve uma forte decepção que quebrou seu estímulo, deixou-a perdida e a fez procurar um outro rumo de trabalho. A partir daí, participou da segunda turma de livros para infância, realizado na Casa Tombada. Então, transferiu a mesma paixão que nutria pela fonoaudiologia para a paixão por livros.
Disse como foi um exercício de desapego de tudo o que já tinha construído, justamente devido à infelicidade que aquilo estava lhe trazendo. Comentou como foi um exercício difícil, mas que acabou abrindo mão e descobrindo que outras coisas eram tão importantes e cheias de potencial para um trabalho novo, para o que ela mesma descobriu ter potencial.
Para Keila, Filosofia é uma das coisas que a abastece bastante e a faz pensar no fazer artístico, como Emanuele Coccia: A vida das plantas.[1] Livro no qual fala da relação do mundo natural com os humanos. Coloca os seres humanos numa posição mais irrelevante dentro do universo. E isso se traduz na observação de plantas e animais e como se coloca diante daquilo, expressando de alguma maneira.
Keila Knobel comenta a relação que é construída e que vai agregando à pessoa. Assim como muda a visão humana diante das coisas, muda sua forma de expressão. Comenta sua leitura de Gaston Bachelard: A Terra e os Devaneios da Vontade.[2] Citou a amiga Denise, uma artista que extrai pigmentos da terra. E que este trabalho acessa uma descoberta e união com o elemento Terra, como Gaia – figura mãe-planetária e a origem dos próprios seres vivos e do homem. Este tipo de trabalho acessa uma origem e experiência profunda com todos os seres planetários.
Volta às suas referências de infância, aquela materialidade acessa memórias das quais não se lembra ou arquétipos de que trata Jung. Conversamos como a matéria nos informa o que deseja ser. Seria uma relação de permitir o que a matéria deseja ser ou para onde ela nos leva. Nossos gestos só precisam deixar esta energia fluir e não interferir neste ponto de convergência. Envolveria um conceito científico de troca de energias entre as plantas, as matérias e o nosso corpo.
A planta rompe o concreto e termina de quebrar o muro para emergir ao Sol e desabrochar a vida. Existe uma inteligência neurobiológica, de acordo com Stefano Mancuso: Revolução das Plantas: um novo modelo para o futuro[3]. Falamos do sistema de comunicação das plantas, raízes, caules e folhas. Dizendo como somos antropocentristas.
Finalmente falamos da campanha no Catarse do Filha 7, dizendo que foi um sucesso. Apesar de ser a primeira vez que participou de uma campanha. Comentou como a tia Marli fez o desabafo de uma vida, o que deu origem a este livro maravilhoso que comecei descrevendo e o qual indico com muito prazer e admiração. Reforçando o que eu já disse, a narrativa maravilhosa, o processo de escrita agradável e ao mesmo tempo que rompe regras linguísticas já estabelecidas, criando uma nova linguagem: a escrita de Marli Soares.
Então, terminamos comentando novamente a epígrafe de Alberto Caeiro e o que afirma, dizendo que é do tamanho do que vê e não do tamanho da sua altura. Logo, o leitor de Filha 7 vai se identificar com a narradora-personagem e seus conflitos, sua forma de ver o mundo, a ajuda que consegue daqueles que a amam e sua luta constante para seguir em frente.
[1] COCCIA, Emanuele. A vida das plantas. Florianópolis. Editora Cultura e Barbárie.1ª ed., 2018, trad. Fernando Scheibe.
[2] BACHELARD, Gaston. A Terra e os devaneios da vontade. São Paulo, Martins Fontes, 5ª ed., 2001.
[3] MANCUSO, Stefano. Revolução das Plantas: um novo modelo para o futuro. São Paulo, Editora Ubu, 1ª ed., 2019, tradução Regina Silva.
Cavando Ideias: Filha 7 e as memórias de Marli Soares é texto de Silvia Ferreira Lima para a coluna Cavando Ideias, veiculada na Expedição CoMMúsica.