Conta Comigo • Toque de Mágica

Conta Comigo • Toque de Mágica

Um conto de Michele Machado Fernandes

Michele Fernandes
Michele Fernandes

Largava os pedacinhos de alho picado bem miúdos sobre o azeite entre as cebolas também cortadas com esmero. Um perfume se erguia e se alastrava pela casa até bater na porta de alguma vizinha, delatando que ali se cozinhava. Colocou uma pitada de sal e disse mentalmente a si mesma que isso faria a cebola liberar a sua umidade. Havia ouvido a informação no programa do MasterChef e se sentia uma verdadeira profissional da gastronomia por assim proceder. 

Conta Comigo! Toque de Mágica

Havia algo de mágico em cozinhar. Não era apenas o ato, mas a entrega: colocar o prato sobre a mesa e compartilhar com a família o produto do seu esforço. A combinação de sabores era única e jamais seria reconstituída na mesma composição de temperos, pois cozinhava por instinto, sem receita. Era como compor uma obra de arte. Os filhos comeriam com entusiasmo e o marido, que não era de dar elogios, com certeza, nesse momento específico, faria algum comentário que aludisse aos encantos da sua obra-prima diária.

Misturou os demais legumes e ouvia a panela entoar uma bela canção, um chiado que embalava em harmonia o frigir dos vegetais. Toda aquela mistura de ingredientes ia se transformando em outra coisa: antes eram apenas alho, cebola, sal, cúrcuma, pimenta, tomate e pimentão, agora era molho. A mágica estava se fazendo. Ela lembrava de um documentário do Nat Geo (ou era do History?) em que falavam de bruxas na sua verdadeira existência. Teriam sido mulheres que viviam independentes de marido, de pai ou de abadia. Eram conhecedoras das ervas e das propriedades medicinais das hortaliças. O preconceito da época acabou desvirtuando as suas práticas ao que hoje conhecemos negativamente como bruxaria. Se fossem homens a fazer a mesma coisa, talvez fossem chamados de alquimistas. 

O micro-ondas disparou um toque que esfaqueou a sua alma. A galinha já havia descongelado. Chegou a hora de cortar em pedaços para fritar na panela. Colocou o animal morto sobre a tábua de carnes. Onde foi mesmo que ouviu falar que havia uma ligação entre mulheres e vegetais, entre homens e carnes? Não lembrava mais qual o programa da Net explicou sobre o assunto, mas recordava que as mulheres eram ligadas à terra em função da sua fertilidade. Colher uma cenoura, uma batata ou uma beterraba, tirar da terra e conhecer a sua cor, o seu aroma e o seu sabor eram atos associados ao nascimento. Enquanto isso, os homens tinham alguma coisa a ver com a carne porque muito antigamente eram eles que costumavam ser os caçadores. Mulheres eram a vida; homens eram a morte, concluía com êxtase de genialidade, ao tentar bravamente desconjuntar a galinha enfiando uma faca entre os seus ossos a fim de separar uma coxa da sobrecoxa.

Estranhamente, neste momento, perdeu a posição anatômica da cartilagem que deveria atingir. Os seus brios de cozinheira nomeada pela tradição da estrutura familiar padrão foram magoados, e o animal sem vida sob os seus dedos parecia lutar para não ser devorado. Enfiou a faca com mais força como se isso fizesse a galinha se acalmar, mas ela, ainda que morta, batia asas e esperneava. A faca perfurava a carne, retalhava o couro, fazia escorrer o sangue. A galinha cacarejava com desespero, e o seu canto se perdia no ar. A carne visguenta, empapada de gordura, escorregou das mãos. As penas voavam pela cozinha. O animal, com o desespero natural aos mortos, bicou os olhos da dona de casa. As garras aquilinas se espetavam contra os seus peitos. A ave atirou a mulher dentro da panela, engrossando o molho.

À mesa, observa os filhos (as suas beterrabinhas) comerem com satisfação. O marido coloca na boca um pedaço. Mastiga com cautela sentindo toda a combinação de sabores, uma mágica a ser apreciada apenas por aqueles que nasceram com o dom. Ele engole e, com ar inquisidor, desferiu o seu veredicto, quebrando o silêncio:

– Faltou um pouco de sal. 

Ela sabe que ele não é de elogiar.

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