Baixaria Sonora: Cem Dias de Solidão

Baixaria Sonora: Cem Dias de Solidão

Cem Dias de Solidão, na coluna Baixaria Sonora, de Jean Paz

(Para ler ao som de “Cão sem Dono”, d’Os últimos românticos da Rua Augusta) 

Ela abriu os olhos, se espreguiçou e percebeu que já não sabia que dia era.

O celular com 13% de bateria apontava que havia chegado ao centésimo dia de isolamento social.

Cem dias sem encontrar os amigos (o mesmo que cem dias sem fechar os bares do bairro). 

Cem dias sem visitar os familiares no interior.

Cem dias sem perambular sem destino pelas ruas do centro, desviando de olhares inconvenientes e dos buracos das calçadas, que conforme a caminhada, multiplicavam-se na mesma proporção.

Ficou angustiada. 

Sentiu vontade de chorar, mas percebeu que após ler sobre pássaros e meninas mortas, suas lágrimas haviam secado.

De repente até o robozinho aspirador de pó se tornou irritante. 

E paisagem que avistava da sua varanda perdeu a cor.

Sentiu vontade de beber, mas ainda era cedo. Talvez seu corpo ainda não estivesse preparado pelas cervejas artesanais que havia comprado na promoção daquele supermercado com nome de ponto turístico do Rio de Janeiro.

Quis evitar os noticiários e os debates desnecessários das redes sociais.

Evitou também o grupo da empresa. 

Pois há tempos o “Home Office” havia se tornado “Hells Office”.

Tomou um café em cápsula, fez um pão na chapa e sentou-se em frente ao computador.

Talvez escrevesse um texto. 

Ou um diário sobre o isolamento. 

Ou um pedido de socorro.

Se fumasse, teria acendido um cigarro só para ver a fumaça subindo devagarinho, com preguiça de se espalhar pelo ar.

Se tivesse uma vitrola, iria ouvir um disco da Bethânia, para provar a si mesma que apesar de tudo, ainda era intensa.

Ficou observando a vida lá fora, e se sentindo uma idiota por ainda respeitar a quarentena, enquanto o mundo a sua volta se comportava como se a pandemia já fizesse parte do passado.

Concluiu que o melhor a fazer era deitar-se mais um pouco para colocar os pensamentos em ordem.

E esperar pelo tal “novo normal”.

Que de normal não tem nada.

Cão sem Dono:

 

Ep:

 


Expedição CoMMúsica

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