Conta Comigo • Autoras Contemporâneas Pelo Mundo
Tenho apreciado muito a leitura de obras contemporâneas de diferentes países que abranjam o olhar feminino e, cada vez mais, percebo a existência uma afinidades em qualquer lugar do mundo.
Selecionei para esta semana três obras escritas por mulheres – uma francesa, uma nigeriana e uma italiana – que trazem diferentes reflexões ao mesmo tempo universais e singulares. Universais porque podem tocar a alma de leitores de diferentes lugares e singulares porque o olhar sensível inspirado pela autora de cada um deles torna uma experiência única e engrandecedora.
A Trança
Quando penso em trança, vem à minha mente a imagem de três mechas que vão se tramando umas às outras de um jeito harmônico, formando um conjunto uno.
É exatamente isso que encontramos no livro “A Trança”, de Laetitia Colombani, publicado no Brasil pela Intrínseca. A escritora francesa vai, nesta obra, alternando cada capítulo com foco em uma das três protagonistas.
Essas mulheres são diferentes quanto à sua nacionalidade, língua, cultura, religião, condição social, estrutura familiar e sonhos… Não é possível imaginar até o final da trama onde os seus destinos se cruzam.
A primeira com quem nos deparamos é Smita, uma indiana pertencente à casta dos dalits, ou seja, os intocáveis, uma categoria excluída, totalmente exposta à miséria. A sua profissão é limpar latrinas e tudo o que essa mulher deseja é dar à sua filha Lalita a oportunidade de estudar para, assim, poder mudar o seu destino e ter dignidade.
A segunda a nos ser apresentada é Giulia, uma jovem italiana, filha de um empresário, um dos poucos que ainda cultivam, na Sicília, a tradição de produzir perucas artesanalmente. O sonho da garota é simplesmente dar continuidade ao trabalho que o pai vinha fazendo.
A terceira mulher é Sarah, mãe de três filhos, judia, canadense, advogada. É uma mulher poderosa, forte, decidida e capaz de fazer de tudo pela sua carreira. Ela tem na sua profissão as mais altas ambições.
Nenhuma dessas mulheres tem ideia do que o destino prepara a elas e como os seus sonhos serão colocados em xeque.
Com uma escrita carregada de emoção, vamos, alternadamente, vivendo junto a essas três protagonistas as suas batalhas. Experimentando as mais variadas dores, vamos compreendendo ser a força e a determinação de cada uma dessas mulheres o elo que as aproxima.
Nós, mulheres, somos também parte dessa trança. Por mais diferentes que possamos ser temos em comum a força que nos leva a realizar sonhos.
Fique Comigo
Quer a indicação de um livro que emociona e tem um enredo muito bem amarrado? Eu sugiro “Fique Comigo”, de Ayòbámi Adébáyò, publicada no Brasil pela Harper Collins.
A autora nigeriana tem como um dos grandes méritos da sua escrita nos apresentar essa cultura tão exótica e conseguir integrá-la habilmente à trama. Crenças, tradições, costumes formam grande parte da força que movimenta essa história de amor e maternidade, nos fazendo questionar a supervalorização dada a esses temas.
Além disso, há um pano de fundo histórico, um período em que a Nigéria passou por uma sucessão de tribulações políticas com golpes de estado e governos militares.
Agora vamos à sinopse. A situação inicial de “Fique Comigo” é a discussão da infertilidade de Yejide, uma jovem mulher, casada com Akin e pressionada pela família do marido para que tenha filhos.
Aqui entra a primeira das várias interferências sociais: os pais de Akin não admitem a possibilidade de que o filho não gere descendentes. Yejide é forçada a passar por curandeiros e a cumprir rituais supersticiosos a fim de conseguir engravidar. Não sendo suficiente, Akin contrai núpcias com mais uma esposa, fato admitido dentro das leis do país, no entanto, fora do acordo estabelecido pelo casal.
Essa situação seria suficiente para despertar vários sentimentos no leitor, mas esse é só o início do livro e o que seque não é diferente, um mergulho em muita dor, raiva e piedade.
Para completar ainda mais a cumplicidade com a obra, a narrativa é toda em 1ª pessoa, alternando Yejide e Akin como narradores. O tempo também se alterna, iniciando a trama cronologicamente em 1985, mas com várias cenas em 2008, nos permitindo antever uma separação do casal.
Entre tantos sentimentos despertados com a leitura, boa parte deles é vem do choque cultural advindo da falta de comunicação entre Brasil e Nigéria.
O continente africano, como um todo, costuma ser esquecido ou subvalorizado nas notícias de jornal e na escola. Mas até a última página, você terá uma boa ideia da visão nigeriana sobre maternidade, família e amor – tão diferente e, ao mesmo tempo, tão igual à nossa!
A Amiga Genial
“A Amiga Genial”, de Elena Ferrante é o primeiro volume da Série Napolitana, publicada no Brasil pela Biblioteca Azul/ Globo. A obra apresenta uma escrita bastante fluida, espontânea e impulsiva, carregada dos sentimentos da narradora que está tentando reconstruir a história dela com a sua amiga de infância.
A trama é dividida em três partes: o prólogo em que a protagonista já em idade madura recebe a notícia do desaparecimento da sua amiga; a primeira parte que trata da infância; e a segunda parte, a maior de todas, em que acompanhamos a adolescência das meninas.
Num vilarejo na periferia de Nápoles, a protagonista Lenu (Elena) nasceu e cresceu sem quase nunca sair de lá. Ainda muito pequena, uma colega de escola, Lila (Raphaella), começou a chamar a sua atenção pelo comportamento opositor e exagerada inteligência para uma menina extremamente pobre.
Lila é uma obsessão para Lenu, que busca imitar a amiga, competir com ela e se compara a cada passo. As duas se tornam grandes amigas, mesmo quando, ao progredir dos anos escolares, Lila fica para trás, pois seus pais não têm condições financeiras de manter os seus estudos.
A história fala basicamente do crescimento não apenas das duas meninas, mas de toda a juventude do lugarejo, uma geração que começa a se opor a uma tradição já insuficiente aos seus sonhos. São pessoas de comportamento explosivo com a curiosidade de a sua linguagem transitar entre um dialeto não assumido pela gramática e um italiano que só existe nos livros.
A trama se passa nas décadas de 50 e 60, quando a Itália ainda sentia os reflexos do pós-guerra, a miséria, os resquícios do fascismo, o comunismo (ameaçador), o moralismo e um financiamento por fontes ilegais nos comércios que prosperavam.
Se tudo isso não faz sentido quando as meninas são crianças, conforme vão crescendo começam a reconhecer de perto a influência do contexto e da sua posição social. Daí surge o mais apaixonante no livro – além do desabrochar do amor e da amizade – a gradativa compreensão do mundo e a solidão que esse entendimento provoca.
Conta Comigo! é a coluna semanal de Michele Fernandes. Toda sexta-feira, um texto inédito.
Michele Machado Fernandes é escritora e sua produção de conteúdo na coluna destaca a presença das mulheres na literatura e a importância de as conhecermos.
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