Trans Horizontal #6
“Sonhos em cinza”, o lançamento de estreia de João V. Bessa
Sonhos, arquétipos e emoções são temas centrais da poesia de João V. Bessa, ao lado de dilemas cotidianos e transtornos vividos por um jovem negro brasileiro. São canções narradas, contos das ruas e esquinas da cidade, onde cruzamos com o outro, encontramos com o que nos fascina e mobiliza, lado a lado com o que há de pior, com o que é nocivo e adoecedor. Nosso corpo desfia memórias e clama por transpirar os seus sentimentos de mundo. Porque tudo que alcança nossos sentidos afeta nossa essência. Essa é a ideia que inspira “Sonhos em cinza”, EP de estreia de João V. Bessa, lançado nesta sexta, 26.
“Sonhos em cinza” é o primeiro lançamento do compositor nascido em Cordeiro (RJ) e residente em São João del-Rei. As três as canções presentes nesse EP são Persistência da memória, Boa constrictor e O amor nos subsolos. O processo criativo que deu origem a esse trabalho está diretamente relacionado com a pandemia, já que as canções foram escritas entre março e janeiro, e têm em comum a linguagem e arranjos intimistas e introvertidos, que surgem durante o isolamento social.
Por outro lado, foi esse o período em que o artista se voltou para a composição e a música, enquanto concluía sua graduação em Comunicação Social. Do jornalismo, João V. Bessa pega como influência as estruturas narrativas e o gosto pela contação de histórias, como no caso da faixa de abertura, Persistência da memória. Nela, parte da trágica história que ouviu, de um acidente em um casamento, para uma reflexão sobre o tempo, os limites da vida e da morte; da memória. Ele comenta: “Mas também fala das forças do tempo e da natureza que estão acima de nosso controle e guiam nosso futuro”.
Se a primeira canção é um conto que trata do fim dos ciclos, Boa constrictor está focada nas emoções: “Porque fala em adoecimento, de tristezas acumuladas: transtornos da mente que sequestram seu orgulho”. Uma narrativa que nos faz pensar em como conviver com os transtornos transformam a linguagem do seu corpo e invadem os seus sonhos. Sendo que João V. Bessa é um homem negro que convive com o racismo cotidianamente, as violências simbólicas, verbais, burocráticas que também afetam e adoecem. Assim, sua música pode ser interpretada como um canto de um negro em busca da sua expressão.
É essa a faixa que melhor transparece a linguagem musical do EP, com seu arranjo que explora as inversões de acordes do violão e, na guitarra, as sonoridades da afinação aberta e arpejos tocados como riffs. Entre suas principais referências de guitarristas estão Keith Richards, Ali Farka Touré, Wes Montgomery e o compositor Charles Mingus, misturando essas influências com as linguagens dos sambas e das baladas soul que gosta de ouvir. Hoje com 24 anos de idade, ele toca desde os 12, compondo principalmente para a guitarra elétrica e o violão, além do piano.
Depois de tratar de términos e dores, “Sonhos em cinza” encerra falando em amor, mas não necessariamente em romance, é O amor nos subsolos. João conta que a ideia de escrever essa canção veio depois de ler o livro Memórias do subsolo, de F. Dostoiévski (1863): “Essa história me fez pensar no que há de mais profundo em mim, em lembranças que estão ocultas, mas que são parte importante do que eu sou”, comenta, relacionando os versos com uma necessidade de romper com o silenciamento e transpirar.
As três canções foram gravadas em maio desde, no El Niño Studio e Lab Criativo de São João del-Rei. Colaboraram com o trabalho Juliano Pires (captação de áudio e mixagem) e Henrique Nolasco (masterização), além do multiartista Rayan Rocha, responsável pela arte de capa.
Biografia
João V. Bessa nasceu em setembro de 1997, na cidade de Cordeiro, região serrana fluminense.
Por influência de sua mãe, que também toca o violão, e de seu pai, que foi um entusiasta de música, teve seus primeiros contatos com os instrumentos ainda na infância. Aprendeu a tocar o violão aos 12 anos de idade, quando participou de um projeto social de educação musical de sua cidade. Logo escreveu sua primeira canção, que chamou Abra logo seu coração, e passou a tomar a composição como um tipo de brincadeira. A diversão se tornou um interesse e, aos 15
anos, se juntou com amigos de escola para formar uma banda que tocava clássicos do rock. Ao longo de um ano, fizeram apresentações em eventos e saraus locais, como a centenária Exposição Agropecuária de Cordeiro, que mobiliza toda a região.
A sua trajetória se afastou da música por uns anos, quando ingressou no curso de Comunicação Social da UFSJ, em São João del-Rei, aos 18 anos. Na universidade, tornou-se repórter, cobrindo desde torneios de futebol amador até a política municipal para, mais tarde, enveredar pelo jornalismo cultural, numa cidade recheada de artistas. Também realizou pesquisas acadêmicas, estudando o papel das mensagens presentes nas canções populares e a construção das subjetividades negras.
Em São João del-Rei, depois de participar de rodas de improviso com amigos e colegas da cena local, passou a se apresentar em festas e festivais em 2020. Em duo com a cantora Isis Ferreira, esteve presente no Festival de Inverno El Niño e no Vista Minas, além de encontros sindicais e do Movimento Negro. João, que também é poeta, conseguiu sua primeira publicação neste mês, emplacando o poema O marasmo dos pastos na Arteria do Simpósio Internacional de Artes e Urbanidades (SIAUS/UFSJ).