Conta Comigo: O Pecado Dela
Um conto de Michele Fernandes
Ela abriu os olhos naquela manhã tão luminosa. Sentou-se na cama, sentindo o corpo leve, saudável. Caminhou até a janela. Lá, avistou um campo florido, cheio de crianças se divertindo. Entendeu de cara, enfim aconteceu o esperado. Desde tão jovem, fora criada para cuidar de uma casa hipotética, um marido hipotético, crianças hipotéticas. Ela, pecadora, fugia de casa, por vezes, para a biblioteca, uma fonte onde respingavam outras realidades nas quais ela estava disposta a mergulhar. Aos dezoito anos, mostrou total desvio de conduta: estava disposta a mudar de cidade sozinha. A finalidade era continuar os estudos, já havia esgotado os recursos da sua cidadezinha natal. O pai entrou em desespero diante de tal pecado e tratou logo de conseguir um noivo para ela. Acostumada a dispensar um e outro, pois logo aprendera o significado de um homem em sua vida, disse “não”, deixando toda a família em prantos. Saiu de casa ouvindo a sentença: “Pecadora!”. Ingressou na universidade enquanto trabalhava para se sustentar. Apesar de ter se formado em pedagogia e ter montado a sua própria escolinha de educação infantil, a pergunta mais comum era se ela não sentia falta de um companheiro ou de filhos. “Não”, ela respondia e via na face alheia a inquisição julgando sua heresia. Ela até pensava em ter um filho, alguém em quem pensava ensinar o que sabia. Então dava uma gargalhada dantesca, ela já não fazia isso sendo professora? Com o passar dos anos, a pergunta foi mudando o formato. Ela não sentia medo de ficar sozinha quando idosa? “Não” era a resposta. Mais uma vez, de olhos espantados, os interlocutores tinham pena do que o destino organizava para penalizá-la de seus pecados. Nem tentava explicar que a companhia dos livros era suficiente para ela. Chegou, enfim, o tempo em que o corpo começou a pedir ajuda. Haveria salvação? Sim, ela, conforme se precaveu, teve dinheiro para se hospedar em um lar onde pessoas bem qualificadas ajudavam-na no que a idade a atrapalhava de fazer. As visitas dos ex-alunos, cheios de saudades da primeira professora era o prêmio final em uma vida sem arrependimentos até chegar o dia de ela fechar os olhos e abrir naquele outro lugar.