O samba de Cartola: a genialidade que supera todas as adversidades
O samba de Cartola: a genialidade que supera todas as adversidades – Uma vida dura, um talento raro e a comovente trajetória de um dos maiores compositores da história do samba.
Por Luis Alberto Costa – Luis Alberto Costa é colunista na Expedição CoMMúsica e escreve mensalmente sobre música popular brasileira.
“Bate outra vez, com esperanças o meu coração / pois já vai terminando o verão, enfim / volto ao jardim, com a certeza que devo chorar / pois bem sei que não queres voltar, para mim / queixo-me às rosas, mas que bobagem, as rosas não falam / simplesmente as rosas exalam o perfume que roubam de ti”. Esses são versos de “As rosas não falam”, uma verdadeira pérola da música brasileira, de autoria de Angenor de Oliveira, o Cartola, a quem podemos chamar de um autêntico ícone do samba.
Ele foi criado na favela, na pobreza, não tinha estudo, não era letrado, mas tinha um profundo conhecimento da vida, um incrível senso poético, um notável talento musical, e compôs obras de imenso valor intelectual. Sua grandeza foi amplamente reconhecida por críticos, escritores, jornalistas, intelectuais, músicos, compositores e artistas dos mais variados campos.
Um compositor de estilo apurado e singular, de uma sofisticação peculiar. Suas melodias têm uma beleza sutil, dramática, arrebatante, as harmonias são marcantes, envolventes, as letras são poeticamente primorosas, profundas, espantosamente geniais.
Mas, curiosamente, pelos idos do ano de 1956, mesmo depois de já ter criado canções clássicas do samba e de ter conquistado grande prestígio como compositor, ele encontrava-se em uma situação financeira bastante difícil, com sérios problemas de saúde e ganhando a vida como lavador de carros. O que então teria levado este brilhante artista a viver nessas condições?
Pra começar a entender, de fato, o significado da obra de Cartola, é preciso conhecer, ao menos, um pouco de sua vida. E certamente, em toda a história da música brasileira há poucas coisas mais impressionantes do que a trajetória de vida deste grande sambista.
Da infância pobre aos primeiros sambas
Angenor de Oliveira nasceu em 1908, no bairro do Catete. Quando tinha 8 anos de idade, sua família mudou-se para as Laranjeiras, onde ele começou a ter contato com os ranchos carnavalescos, como eram chamadas as típicas agremiações carnavalescas do Rio de Janeiro naquela época. Seu pai tocava cavaquinho e violão, mas não queria que os filhos se tornassem músicos e os proibia de tocar. Então o pequeno Agenor aproveitava os momentos em que o pai não estava em casa e pagava o violão escondido. E foi dessa forma que ele aprendeu a tocar.
Em 1919 (ele estava então com 11 anos), sua família, em dificuldades financeiras, mudou-se para o morro da Mangueira, na época uma nascente favela, com apenas algumas dezenas de barracos. Logo conheceu Carlos Cachaça, que, apesar de ser seis anos mais velho que Cartola, tornou-se um grande amigo e um de seus maiores parceiros de composições.
Na adolescência largou os estudos para trabalhar como pedreiro, e desde os 15 anos de idade já se inclinava para a vida boêmia. Sua mãe morreu quando ele tinha 17 anos, e em razão dos constantes conflitos com o pai, Cartola foi morar sozinho, ainda aos 17. Passava boa parte de seu tempo em prostíbulos, tendo contraído muitas doenças venéreas. Ficou bem enfraquecido fisicamente, e a partir daí os problemas de saúde seriam constantes pelo resto de sua vida.
Vendo a situação em que o jovem se encontrava, uma vizinha, de nome Deolinda, passou a cuidar de Angenor, e os dois acabaram se envolvendo e se casando. Deolinda, 7 anos mais velha que ele, era ao mesmo tempo esposa e praticamente uma mãe para Cartola. Ela também já tinha uma filha de dois anos, que ele criaria como sua.
Nessa época, Cartola começava a compor suas primeiras canções e logo foi se firmando entre os principais compositores do morro da mangueira. Foi quando junto com amigos músicos e compositores, fundaram o “Bloco dos Arengueiros”, que seria o embrião da Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira, criada em 1928, da qual ele foi diretor de harmonia, até o final dos anos 1930. Foi também autor de alguns dos sambas-enredo da mangueira, inclusive o primeiro da escola, o samba “Chega de Demanda”.
O reconhecimento como compositor e os tempos mais difíceis
Vários sambas de Cartola foram gravados por importantes intérpretes da década de 30, como Francisco Alves, Araci de Almeida, Carmem Miranda, Mario Reis e Sílvio Caldas. E ao contrário do que faziam inúmeros compositores da época, Cartola não aceitava vender a autoria das músicas, mas apenas os direitos de gravação, e sempre exigia que seu nome fosse creditado, sozinho, como autor das canções.
Assim passou a ter enorme reconhecimento como compositor. Recebeu de críticos e jornalistas da época o apelido de “Divino Cartola”, e já no início dos anos 40, seu talento era reconhecido e admirado por alguns dos maiores nomes da música brasileira, como o maestro e compositor Heitor Vila-Lobos.
Mas a partir do final dos anos 40, Cartola passaria por maus momentos. Sua participação no cenário musical foi diminuindo. Desentendeu-se com a direção da Mangueira e acabou se afastando da escola. Esteve gravemente doente, acometido por meningite. Em seguida, sua mulher, Deolinda, faleceu, vítima de infarto. Foi quando então se afastou totalmente do morro da mangueira. Seus amigos e conhecidos chegaram a pensar que ele tivesse morrido. Na verdade, ele tinha ido morar numa favela no bairro do Caju, onde sobrevivia penosamente, sem emprego, vivendo de bicos, bebendo demais e em lastimáveis condições de saúde.
Naquele momento surgiu em sua vida a mulher que seria decisiva em sua trajetória, Dona Zica, com quem se casou e viveu até seus últimos dias. Ela o convenceu, e os dois voltaram a viver no morro da Mangueira, bem próximo à quadra da escola de samba, onde, depois de sete anos sumido, ele foi recebido com surpresa e alegria pelos amigos.
A redescoberta e o retorno do “Divino Cartola”
Em 1956, Cartola trabalhava como vigia e lavador de carros em um prédio em Ipanema. Foi então que o jornalista Sérgio Porto, conhecido pelo pseudônimo de Stanislaw Ponte Preta, viu e reconheceu o compositor, de quem era admirador de longa data. Surpreso, impressionado e abalado por ver as condições físicas penosas em que Cartola se encontrava, o jornalista, cujos textos tinham enorme prestígio na imprensa da época, resolveu então escrever uma série de artigos sobre o “Divino Cartola”, promovendo assim uma verdadeira redescoberta do artista, que continuava a compor sambas de altíssima qualidade.
Sérgio também o ajudou arranjando-lhe um emprego de contínuo no Jornal Diário Carioca, e em seguida no Ministério da Indústria e Comércio. Foi lá que, em certa ocasião, o ministro ouviu de um funcionário uma reclamação acerca do fato de que Cartola estava tendo regalias demais naquele emprego, ao que o ministro teria respondido: “eu sei disso, mas esse caso é diferente, esse homem vai entrar pra história, nós não”. E nisso ele tinha toda razão.
No início dos anos 1960, Cartola foi trabalhar como zelador do prédio da Associação das Escolas de Samba e o local se tornou um grande ponto de encontro de sambistas. As rodas de samba contavam com a ótima comida feita por Dona Zica, que era uma excelente cozinheira.
Daí surgiu a ideia, e o casal resolveu abrir seu próprio restaurante/casa de shows, o Zicartola, que juntava a boa cozinha de Dona Zica e o samba comandado por Cartola. Rapidamente o lugar passou a ser bastante frequentado por jornalistas, escritores, músicos e compositores, reunindo artistas de diferentes gerações, do samba e da bossa-nova, do morro e do asfalto. Lá, Cartola e seus parceiros compuseram sambas memoráveis, como “O sol nascerá” e “Alvorada”. Foi lá, inclusive, que o grande Paulinho da Viola começou sua carreira artística. Ele mesmo relata que recebeu das mãos do próprio Cartola o seu primeiro cachê como músico.
Mas apesar do sucesso do ponto de vista artístico, depois de dois anos o Zicartola acabou fechando as portas, tendo-lhe faltado uma adequada administração. Por conta disso, estando mais uma vez em dificuldades financeiras, Cartola teve de ir morar por algum tempo com o pai, com o qual voltara a ter contato, depois de décadas afastados.
Entretanto, nos anos seguintes, várias de suas composições foram gravadas por grandes nomes da música brasileira, como Nara Leão, Elizeth Cardoso, Clementina de Jesus, Clara Nunes, Elza Soares, Paulinho da Viola e Beth Carvalho. Com isso ele alcançou uma boa projeção profissional e, novamente, um imenso prestígio como sambista e compositor.
A consagração definitiva e o merecido “final feliz”
E enfim, em 1974, aos seus 66 anos de idade, veio a consagração, com seu primeiro disco solo, intitulado Cartola, lançado pela gravadora Marcus Pereira. O álbum, que traz algumas de suas clássicas composições, como “Tive sim”, “Acontece”, “Alegria”, “Alvorada” e “O sol nascerá”, foi muito elogiado pela crítica, recebeu prêmios e foi considerado como um dos melhores discos daquele ano.
Em 1976, pela mesma gravadora, veio o segundo álbum, também intitulado Cartola, e mais uma vez com indiscutível sucesso de crítica. O disco conta com algumas verdadeiras obras-primas da música brasileira, como “As rosas não falam”, “O mundo é um moinho” e “Preciso me encontrar” (de Candeia), além de outros sambas primorosos.
Com o enorme reconhecimento dos dois álbuns, Cartola realizou seu primeiro show individual, no Teatro da Galeria, bairro do Catete, o mesmo onde ele nasceu. O show foi sucesso de público e, em 1977, ele fez uma turnê por várias partes do país. Além disso, participou de muitos programas no rádio e na televisão. E ainda em 1977, lançou, pela gravadora RCA, seu terceiro disco, “Verde que te quero rosa”, com mais uma ótima recepção pela crítica.
Em 1978, mudou-se da Mangueira para Jacarepaguá, onde, em sua primeira casa própria, viveu até o final de 1980, quando então faleceu, de câncer. Nos últimos anos de vida, assim como depois de sua morte, recebeu inúmeras homenagens em programas de televisão, coletâneas, gravações ao vivo, cinebiografias e outros tantos eventos artísticos. São incontáveis as regravações de suas canções, feitas por diversos artistas dos mais variados estilos.
Sem dúvida, uma trajetória digna de uma personalidade grandiosa, que diante de tantas dificuldades, tantos infortúnios vividos desde a infância, sempre teve uma atitude altiva, positiva, serena e esperançosa diante das adversidades da vida. Como diria ele, em seus próprios versos: “a sorrir, eu pretendo levar a vida, pois chorando eu vi a mocidade perdida”.
Enfim, o inigualável fenômeno Cartola não tem uma explicação racional. Resta-nos conhecer, admirar e nos impressionar com sua obra, seu talento e sua incrível história, que, felizmente, teve o seu final feliz, e aqui vale lembrar uma de suas frases mais conhecidas: “minha vida foi igual filme de mocinho, eu só venci no final”. E como é bom saber que Cartola venceu no final, para a glória do samba, para o bem e para a grandeza da música brasileira.
Canal oficial do Cartola no Youtube
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