Cavando Ideias • Denise Braune e as Transgressões Cerâmicas
Texto de Silvia Ferreira Lima para a Expedição CoMMúsica. Silvia escreve sua coluna todas as sextas-feiras.
Cavando Ideias • Denise Braune e as Transgressões Cerâmicas
Sexta-feira, dia 11 de junho, às 19 horas, tive o prazer de encontrar e conhecer virtualmente a artista visual Denise Braune, com formação em cerâmica, para uma Live, em que conversamos sobre seu trabalho artístico, seu encontro com o curador PhD Andrés I.M. Hernández e a consequente participação no livro Transgressões Cerâmicas. Denise foi muito simpática e animada com o convite, principalmente com a oportunidade de falar sobre seus trabalhos e seu processo criativo. O que sempre suscita a curiosidade dos observadores, ao mesmo tempo em que auxilia o artista a ter um feedback sobre seu trabalho e trocar ideias e experiências.
Desde o início, Denise colocou a importância de o artista ter um tempo, uma oportunidade para falar do seu trabalho, o que sempre o faz compreender seu processo de forma diferente. Ela contou que conheceu o Andrés através do CCBRas (Cerâmica Contemporânea Brasileira). Ela esteve numa exposição em São Paulo, em 2018, no Centro Brasileiro Britânico, também organizada pela CCBRas. A partir disso, Denise começou a frequentar a CCBRas, que teve um incremento maior pelo Instagram, o que se transformou numa ocasião para conhecer mais gente e se envolver nesta proposta de Transgressões Cerâmicas. Denise comenta que a arte deve ser mostrada, comunicada, assim ela pode entender seu trabalho de uma outra forma, através do olhar do observador, uma vez que o artista fica muito envolvido naquilo que faz, e o que faz é um espelho de si mesmo.
E ela queria começar a colocar seu trabalho no mundo, logo, em 2017 decidiu correr riscos e mostrar seu trabalho. Nas palavras de Denise, ela se entende hoje como artista visual e deve agradecer ao Andrés porque ela é ceramista de base. Desde 2012, passou a estudar cerâmica e em 2016, começou a se profissionalizar. Já, em 2020, ela fez uma opção de mergulhar na cerâmica mesmo, como uma linguagem, e deixou seu trabalho de advogada completamente de lado. E tudo isso aconteceu no meio da pandemia, que revolucionou a todos nós, num chamamento natural para que pudéssemos expor nossa individualidade.
Denise disse que este foi o pedaço de si que quis salvar e que sempre a acompanhou desde há muito tempo, porque ela sempre esteve em contato com isso. Visto que teve uma escola de arte e educação e trabalhou com criança, o tempo todo neste projeto de arte-educação. Então, em alguma hora isso iria emergir uma vez que estava abafado por outras coisas, necessidades, confusões, incertezas. Aí, ela conheceu o Andrés a partir desta proposta do livro mesmo, Transgressões Cerâmicas. E ela começou a ter o desejo de dar um encaminhamento diferenciado para o seu fazer. Então passou a fazer um curso com o Andrés que era voltado para um encaminhamento interior do artista. E manifestou ao Andrés a vontade de fazer um trabalho mais individual, mais personalizado. A partir daí, Denise confessa que passou a entender muita coisa do seu trabalho porque foi obrigada a se rever. Então, ela passou a sentir a necessidade de separar a ceramista da artista visual, porque tinha muito trabalho já produzido e que precisava de uma organização.
Logo, quando o Andrés começou a oferecer o curso de Livro de Artista, Denise comenta que no princípio se sentiu um pouco perdida, porque não estava entendendo bem a proposta. Disse que acabou sentindo uma surpresa pois ela já vinha, de alguma maneira, fazendo este trabalho pessoal, particular. Um dos seus trabalhos já tinha um vídeo, eles começaram a organizar este vídeo que ficou pronto. Aí, quando ela foi fazer o livro de artista, Andrés lhe disse que o trabalho já estava pronto, porque era o vídeo. E Denise ficou surpresa!
Ela teve a oportunidade de conhecer as pessoas do grupo e trocar experiências, o que considerou muito importante e lá descobriu que estava em processo, que as coisas acontecem quando procuramos. Começamos a falar de um dos seus trabalhos, em que Denise trabalha em cima de uma tela de pintura com argila. Comenta que sempre achou que isso fosse possível. Falou que antes de chegar àquela tela tem a ceramista, porque ela colocou a cerâmica rompendo a tela para ver o que sairia dali.
Comentou como se via neste trabalho e como qualquer um poderia se ver a partir dali, então veio a ideia de pôr um espelho. Falamos da série INSIGHTS, 2021 (argila creme, tela e espelho sobre madeira, modelagem manual, forno elétrico 900º, 40x32x6 cm). É curioso porque quando se bota o olhar, ele é bem um rasgo, então só dá para ver um olho mesmo. O outro também era um espelhamento, mas um espelhamento diferente, com a cerâmica brotando dali também (manta térmica, palha de açaí, argila tabaco, modelagem, forno elétrico 900º, 40×40 cm).
Falamos da sua instalação Cidade sem Homens, 2021, que ela diz estar em processo, comentando sua autodescoberta e a descoberta do próprio trabalho, nas suas palavras, reunindo fragmentos do seu inconsciente. Bem, no início da pandemia, ela foi na Glória, no aterro no Rio de Janeiro, que é um lugar lindo. Ela estava lá passeando quando se deu conta daquele vazio que tinha ali. Então, ela pensou em como era realmente uma cidade sem homens, construída por homens e sem homens… Esta sensação ficou muito forte, por isso Denise tirou muitas fotografias. E deixou ficar.
Há tempos, Denise queria reciclar uma argila, na realidade, ela tinha guardado cinco anos de argila, sem reciclar. Então, descobriu que na sua extrusora poderia fazer uma espécie de “maromba”, onde se prensa toda a cerâmica e ela sai dali prontinha para ser trabalhada, depois da reciclagem. Denise diz que não tem uma maromba até porque é uma máquina cara. Então, ela improvisou nesta extrusora de onde saem peças quadradas. Aí, colocou lá o barro a ser reciclado, o que só pode fazer nos formatos quadrados ou cilíndricos. E começaram a sair, conforme ela apertava, fazendo barulhos que estouravam todas as bolhas de ar. Ela não sabia o que iria acontecer ali. Mas quando ela terminou de fazer tudo, veio-lhe em mente a cidade sem homens, com aquelas formas tortas. Todas as pessoas que olhavam achavam parecido com uma cidade.
A este trabalho ela reuniu a ideia de um outro trabalho, o Mini Parabólicas (cerâmica e esmalte preto, 4 a 10 cm), que parecem antenas parabólicas e que ela sempre quis colocar no trabalho, mas desta vez ela usou arame para adicionar à instalação Cidade sem Homens. Para Denise funcionou com se as pessoas na Cidade sem Homens continuassem a se comunicar através da internet, com o wi-fi da vida. Mas este trabalho Cidade sem Homens, continua e virá com uma surpresa, que ela diz contar depois.
Então, começou a contar dos VOIDS, 2020 (argila, tabaco, terracota, shiro e creme, forno elétrico a 900º, 90×180 cm). Ela afirma que começou a fazer este formato de anéis compulsivamente, sem saber qual forma era e onde iria chegar. Ela só queria fazer isso. Denise conta que foi fazer cerâmica porque queria transgredir a cerâmica, ela queria transgredir o torno. Afirma que quis aprender torno para fazer formas diferentes. Um dia, na terapia, algo a fez tomar consciência das formas que fazia, então começou a fazer o trabalho das células, que acabaram se transformando em outras coisas, nas suas palavras, as formas vão passeando e se transformando em outras coisas.
O primeiro trabalho que ela fez deste tipo, lembrava algo de mar, de navegar, de imigração e foi se transformando, remetendo ao afogamento de uma criança no mar. Em 2020 foi a paralela. Denise conta que todo seu trabalho se transforma e a atinge de algum sentido, afinal, esta é a função da arte, esta é a função do fazer do artista.
De células seus trabalhos passaram a ser os VOIDS, os vazios, os nossos vazios, os caminhos que temos que percorrer para chegar a qualquer lugar nesta vida. A vida é uma travessia que temos que percorrer sozinhos, são estes os nossos vazios. Para Denise, a arte lhe mostra isso.
Afirma que somos um coletivo de vazios, por isso que vamos ocupando as paredes com nossos vazios. Os vazios estão todos por aí e de alguma maneira, nós nos encontramos neles. Então, o trabalho dos VOIDS, tem esta historinha aí para contar.
Conversamos sobre a Spirale, uma luminária que ficou maravilhosa, e que não era uma luminária, mas encontrou seu espaço e função por acaso. Denise contou que a Spirale vem dos VOIDS e que ela passou a cortar os VOIDS juntar os VOIDS, juntar estes vazios para dar-lhes outro sentido e dali veio a espiral, que para ela tem a conotação do vai-e-vem, do rolar para frente e para trás. Daí, Andrés sugeriu que ela colocasse a espiral em pé. Ela estava na sala da sua casa e na hora em que pôs de pé tinha só um feixe de luz, isso já deu o efeito de uma luminária. A Spirale por acaso encontrou seu lugar e função como luminária. Denise comentou como a mesma peça quando deslocada adquire novo sentido, palavras do Andrés Hernández para mim, numa ocasião de orientação individual.
Denise afirma como todo mundo, quando vai fazer cerâmica, fica pensando na utilidade do que vai fazer. Ela aconselha a não fazer nada, mas se entregar ao material e à ação do fazer. Diz para não pensar no que se vai fazer, mas deixar rolar, deixar acontecer. Buscar depois. Ela disse que é isso o que acontece com ela, um pouco; que o mesmo aconteceu com as células, que viraram VOIDS, que viraram espiral, e que vai rolando. Agora ela diz que está fazendo um vídeo contanto esta história das transformações e das relações que vão se estabelecendo.
Denise me instigou a fazer gravuras na cerâmica. Afirmando que ela está pensando em fazer algumas destas experiências. Então, falamos sobre seu Ensaio, 2014, e perguntei se ela tinha usado as bexigas como molde para colocar a cerâmica. Contou que este foi um dos primeiros trabalhos que ela fez, quando começou a fazer cerâmica. Um de seus primeiros propósitos foi transformar barro em nuvem. Então, ela pensou que tinha que fazer nuvens. E como faria nuvens? Começou a pensar que faria balões de gás para modelar nuvens. Mas o Andrés comentou que não via nuvens ali, via moléculas.
Ela disse que adorou fazer, adorou o resultado, mas só depois aquilo adquiriu algum significado, foi entendido de maneira diferente. Num dia de verão, com muito calor, ela trabalhava bastante o barro e começou a suar e seu suor pingava no trabalho. Então, ela percebeu que era a força do trabalho que transformava o barro em nuvem. Ela sentiu neste momento em que ela mesma escorria sobre o trabalho e deixava ele acontecer. Era esse seu propósito desde o início. Então, encontrou o que procurava. Só entendeu quando teve esta experiência de deixar o suor pingar. Isso para ela era transcender o limite da cerâmica. Ele comenta que esta foi a metade do caminho de um processo que só entendeu uns quatro ou cinco anos depois.
Denise Braune se diz muito convencida de que a força do trabalho está naquilo que ele conta. Então, poder contar as histórias dos seus trabalhos é realmente um grande prazer! Afirma que a Arte é o humus do ser humano, que a cada trabalho é como se ela criasse seu ambiente. Isso ela diz que é a sustentabilidade: é a possibilidade do homem se relacionar com o ambiente em seu próprio ambiente. Preservar-se a si mesmo e preservar seu ambiente.
Denise conta que possui torno e forno no Rio de Janeiro e na sua Fazenda da Grama, em Rio Claro. Mas normalmente começa o trabalho no campo, queima e o leva para o Rio, onde ela pode encontrar pessoas e mostrar bastante seu trabalho a fim de vendê-lo e divulgá-lo. Ela precisa mostrar o trabalho para outros arquitetos e designers que possam estar sempre utilizando as obras e divulgando. Sua inspiração no campo é sempre muito mais fluida, mas ela precisa ficar no campo e no Rio.
Agora, um trabalho seu está em divulgação no Fernando Viegas, no Rio, que é um designer de móveis e tem uma casa muito bonita no Jardim Botânico, onde mostra na casa um espaço designado para cada artista. E Denise teve a honra de ser convidada para expor num destes espaços. Por isso, ela já está divulgando.
Ela afirma que é deste jeito que se entrega ao trabalho, deixando a matéria lhe dizer no que deseja se transformar, aonde quer ir e o que quer ser. Fala que a arte se apresenta e só depois a artista consegue decodificar o que o trabalho lhe mostra. Comenta que teve um momento em que estava fazendo um jarro bem grande. De repente, jogou um VOID em cima deste jarro e foi tomada por uma alegria tão grande, que só depois descobriu o que a matéria queria ser. Nesta ocasião, ela se identificou com Picasso, em seu non sense, em sua espontaneidade. Aí denominou as jarras de filhas de Picasso: a primeira é a caçula porque é bem pequena, a segunda está segurando a barriga então é a grávida, e outra cheia de bolhas, que chama de a filha fértil de Picasso.
Ela diz se considerar feliz por encontrar a influência inconsciente dele, que é o que ela identifica, mas não sabe se as pessoas também identificam.
Denise diz que só entende um trabalho muito tempo depois, que ele também muda, como a história dos VOIDS, cujos significados foram se transformando a cada momento. Denise iguala estas sensações a uma biografia: que só deve ser escrita muito tempo depois que uma pessoa morreu, porque durante a sua vida, seus significados vão se modificando. Assim como um trauma pode se modificar até o fim da sua vida ou até depois do fim da sua vida. Porque aquilo pode ter ganho um outro significado e ser transformado pelas pessoas. E ainda pode ser de muito valor. Assim como muitos artistas ganham notoriedade depois da morte.
Como se descola o trabalho da pessoa da própria obra, como aquilo pode ser tão importante, mais do que o mesmo jamais imaginou que seria. E ser significativo de uma época. Ser simbólico de uma época. Tudo isso também advém de um inconsciente coletivo, porque as coisas estão por aí. Denise contou como tem milhões de ideias que ficam fervilhando e que não consegue colocar em prática. Observou como temos muito mais ideias do que concretizamos. Aí, quando você vê alguém pegou sua ideia, fez primeiro que você.
Denise afirma que as ideias existem num outro patamar do qual todos se alimentam, concretizando estas ideias na medida do possível. Concluiu falando sobre sua experiência de arte educadora que começou na Escolinha de Arte do Brasil de Augusto Rodrigues, um importante arte-educador do Rio de Janeiro, no Largo do Boticário, próximo à Estação do Corcovado. Ele provocava os educadores para trabalharem com arte. E teve vários trabalhos expostos pelas paredes. O que influenciou Denise Braune, que teve uma escola de arte-educação chamada Espaço Arte no Rio de Janeiro, quando se apropriou das linhas construtivistas e da filosofia junguiana, o que permanece no seu trabalho.
Conclui falando de sua experiência que começou como arte educadora, passou para a advocacia com o estudo de Direito, e acabou voltando para a cerâmica, numa espiral que retorna às origens. Comentou que hoje a arte tem mais espaço do que tinha naquela época, graças também à internet. Assim, houve uma democratização da arte que passou a entrar na casa das pessoas e envolvê-las de outra forma. Ganhando, portanto, mais olhares, mais participações e mais admiração.
Denise terminou afirmando como o barro permeia sua visão. O que ela só observou muito tempo depois de ter tirado sua fotografia, com os óculos sujos de barro e mexendo nas lentes: as janelas por onde vê todo o barro.
Foi um privilégio conhecer virtualmente Denise Braune e ouvi-la conversar sobre seu trabalho, sua experiência de vida e os diferentes significados que vão adquirindo no decorrer do tempo. Denise Braune podia não ter consciência, mas seu encontro na obra Transgressões Cerâmicas já estava marcado. Assim, como nosso privilégio em conhecê-la e poder admirar seu trabalho.
Cavando Ideias • Denise Braune e as Transgressões Cerâmicas
Portfólio de Silvia Ferreira Lima e contato
Acrescentando que as fotografias das obras são referente à exposições e premiações dos trabalhos da artista:
2020 – Cidade sem homens _em produção
2017 – Bottle and Boxes – Na Bélgica. Premiação do melhor trabalho.
2019 – Tower over Clouds – Romenia – Cluj