Cavando Ideias – O Dia do Curinga
Cavando Ideias – O Dia do Curinga é resenha de Silvia Ferreira Lima em sua coluna semanal na Expedição CoMMúsica.
‘O Dia do Curinga’ é um livro de Jostein Gaarder, professor, filósofo, teólogo e literato, norueguês, que escreveu a partir da simbologia ou alegoria que um jogo de cartas possui com a realidade e a contagem dos dias, semanas e anos, ou seja, guarda semelhanças com nosso calendário. Esses cálculos de dias e anos, fez-me lembrar de outro livro interessante, sobre o qual não vou falar agora: ‘O Homem que Calculava’, de Malba Tahan, cujas referências incluo no final do artigo.
O livro foi escrito e publicado em 1996 pela Editora Cia das Letras, no selo Seguinte, voltado ao público jovem. Até por isso, eu mergulhei na sua leitura. Afinal, tinha acabado de viver um momento na sala de aula, com os alunos de nono ano, em que jogamos Cacheta, um jogo de baralho da família do Pif Paf ou Pife. Cacheta é jogado com dois baralhos franceses de 104 cartas, porém o coringa é estabelecido a cada partida e o vencedor se dá ao final de uma rodada de jogos, pela contagem de pontos.
Bom, meus alunos de nono ano começaram com uma mania enorme de jogar baralho a todo momento. Então, um dia, resolvi me aproveitar deste jogo e trouxe para eles a história dos jogos de cartas e toda a representatividade das cartas e baralho, de cada naipe e de cada figura ou número. Pedi até mesmo que os alunos elaborassem uma história a partir disso. Logo, surgiram redações bem interessantes. Mas a que mais me tocou foi uma em que o aluno escreveu que nunca ninguém tinha jogado com eles antes. Assim, percebi como para os adolescentes, neste momento de retorno às aulas presenciais, pós-isolamento social, tinham voltado tão carentes e precisando tanto de atenção, como uma simples jogada de cartas de baralho.
Então, novamente, surgiu em mente, o trabalho de Paulo Freire com a alfabetização dos alunos em 45 dias, aproveitando-se do que o grupo tinha por interesse. Tentei fazer isso. Deu algum resultado. Então, acabei por ler o romance de Jostein Gaarder : ‘O Dia do Curinga’. Nesse romance, a primeira coisa que achei interessante foi observar a teoria descrita pelo autor de que um único baralho possui 52 cartas, como as cinquenta e duas semanas do ano, acrescidas pelas cartas do curinga, que seriam dois dias a mais, ou melhor, um dia a cada quatro anos, o dia 29 de fevereiro. Também chamado no livro, pelo dia do curinga.
Eu teria indicado a leitura deste livro de 378 páginas, se soubesse que meus alunos são leitores ágeis. Porém, com dois anos sem aulas presenciais, pouquíssimos se dedicaram à leitura a ponto de conseguirem ler todo o livro, mesmo que o protagonista: Hans-Thomas seja um menino de doze anos, cuja mãe se afastou dele e do pai por oito anos. Infelizmente, muita prática e habilidade de leitura é necessária para concluir essa leitura. O que não é comum entre os jovens, principalmente, os jovens de escolas públicas. Ainda que várias professoras, desenvolvam o hábito da leitura na sala de aula, principalmente durante o Ensino Fundamental I. Mas o que se observou durante esses dois anos de isolamento, foi, na grande maioria dos casos, um desprezo aos livros. Ainda que a prefeitura tivesse distribuído para os alunos de cada turma cerca de oito livros de leitura, numa caixa, entregues durante a pandemia.
Mesmo com o retorno às aulas presenciais, é difícil tornar os alunos conscientes do quanto é essencial ler e escrever bem. E de como precisam aproveitar a oportunidade que é um direito de cada aluno. Tentei de todas as formas incentivá-los a esse respeito, até mesmo, colocando como um ritual ou um hábito. Não consegui o sucesso que eu pretendia. Afinal, acima de tudo, os alunos desejam fazer o que lhes dá prazer. E a leitura não está neste rol de coisas. Lamento por isso, mas sei que o papel dos pais na educação dos filhos também está relacionado a instigar o prazer da leitura. Muitas vezes, lendo para eles. Como fiz com minha filha todas as noites, antes dela dormir.
Porém, ter acesso a uma grande estante de livros e observar os pais lendo, sempre é fundamental. Bom, observar os pais lendo também ajuda muito! E sempre fiz isso. Comecei a leitura de ‘O Dia do Curinga’, cujas páginas inicialmente contam a história do menino de doze anos e o pai viajando até Atenas atrás da mãe, que saíra da pequena cidade de Arendal na Noruega há bastante tempo. Enquanto viajam, o menino começa a leitura de um livrinho, para o qual podemos novamente comentar a relação entre ficção e realidade. Uma vez que a história do livrinho se relaciona com a vida do menino e sua família, ou ainda, o menino entra na história do livro a tal ponto que suas alegorias possuem relação com sua vida. Já parto do princípio que as alegorias são a verdade sobre outra roupagem, assim como o curinga aparece com outra roupagem na vida real.
Nossa vida na terra pode parecer extremamente breve, mas fazemos parte de uma história comum que continua a se desenrolar, mesmo depois de já termos partido. Pois não vivemos apenas nossas próprias vidas. Quando visitamos lugares antigo como Delfos e Atenas, podemos até sentir isso que estou dizendo: a gente anda e sente no ar a presença de pessoas que viveram neste mundo muito antes de qualquer um de nós. (GAARDER, J. p.366)
O trecho acima, transcrito do livro, chamou-me a atenção, principalmente, se levarmos em consideração o que os físicos já comentam hoje, que a diferença entre tempo, sua cronologia, é muito relativa, uma vez que depende do lugar em que estejamos, de nossos desejos e sentimentos. Mas sim. a diferença entre o tempo realmente não existe. Ainda mais quando direcionamos nossa atenção e sentimentos para entrar numa outra narrativa, para observar como uma alegoria nos fala tanto às nossas experiências de vida.
Este mundo’, pensei, ‘é um milagre tão fantástico, que, diante dele, a gente não sabe se ri ou se chora. Talvez as duas coisas ao mesmo tempo, o que não é nada fácil’ (GAARDER, J. p.355).
Às vezes, a gente tem que estar maduro para entender, ou sentir, de fato, toda a verdade maravilhosa da vida. Eis como este livro mexeu comigo e o estou recomendando. Encontrei nas palavras do autor beleza indescritível e um grande amor à vida. Assim, meu valor mais importante, se encontrou com um amor adquirido e aprendido com meus pais. A quem eu agradeço pelo maravilhoso incentivo: a vida e a leitura.
Referências:
GAARDER, Jostein. O Dia do Curinga. Editora Cia das Letras. São Paulo, 1996.
TAHAN, Malba. O homem que calculava. (a seguir o link do pdf do livro que achei no Google Drive) https://drive.google.com/file/d/1UGOBWLZive53WV9Vg07QY7xztH29-bYz/view
https://www.ludopoli.br.com/hist%C3%B3ria_do_baralho.aspx
https://super.abril.com.br/mundo-estranho/como-surgiu-o-baralho/
https://www.megajogos.com.br/cacheta-online
https://copag.com.br/blog/detalhes/cacheta-saiba-como-jogar-e-as-principais-regras
Já quero conhecer. Adoro este autor e o fato dele escrever infanto juvenis tão complexos, sem subestimar a inteligência de seu público, é das coisas mais generosas que já vi. Obrigada pela apresentação e parabéns pelo trabalho em sala de aula, boa sorte!
A abordagem do autor é mesmo muito interessante!! Após sua leitura do livro, envie sua perspectiva para a gente! E se desejar publicar uma resenha, vem com a gente 👏👏👏