Conta Comigo • É possível viver de literatura no Brasil?
Conta Comigo • É possível viver de literatura no Brasil? é artigo de Michele Machado Fernandes em sua coluna semanal na Expedição CoMMúsica.
Algo decepcionante para qualquer escritor brasileiro é tentar viver da literatura produzida. Para mim, ainda é um sonho, porém esse desejo dista da realidade brasileira. O Brasil, como sabemos, não é um país de leitores e isso gera um ciclo de pequenas (ou grandes) explorações e opressões dentro da cadeia de produção do livro.
Entre os autores publicados por editoras que seguem um modelo tradicional, ou seja, arcam os custos do serviço de publicação, o recebimento de royalties (pagamento referente aos direitos autorais) fica, em geral, entre 5% e 10% do preço de capa. Se formos tomar como base um preço médio de R$40,00 cada exemplar, os autores receberiam até R$4,00 por exemplar vendido. Para tirar um salário mínimo, hoje fixado em R$1.212,00 seria necessário vender mais de 300 livros por mês, quantia que, para um autor médio, ou seja, ainda não tão renomado, restringe-se ao momento do lançamento de sua obra e ainda com muito esforço. Mas se atente: estou falando do salário mínimo e não de um “salário mínimo necessário”. Conforme cálculo do DIEESE (disponível em: https://www.dieese.org.br/analisecestabasica/salarioMinimo.html com acesso em 24/08/2022), o salário mínimo necessário ao brasileiro, tomando-se como base o mês de julho, seria R$ 6.388,55. Nesse caso, o autor precisaria vender quase 1.600 livros a cada mês, algo totalmente distante da nossa realidade.
Para se ter uma ideia, em países com cultura leitora, os autores costumam receber os royalties como adiantamento, conseguem não apenas viver de sua escrita, mas ainda podem, em muitos casos, tornar-se celebridades.
Voltando à realidade brasileira, as editoras alegam que pagar mais pelos royalties seria impossível, adiantamento, então, é algo fora de qualquer possibilidade, com raras exceções. Além dos gastos com os serviços relacionados à produção do livro (revisão, diagramação, capa etc.) e os custos com a gráfica (lembrando da alta do papel em função de ser um produto nacional com alto potencial de exportação), também é necessário colocar nessa soma a taxa cobrada pelas livrarias, variando, em geral entre 40% e 60%. Essa média é, provavelmente, a maior fatia dos ganhos com as obras literárias, porém, durante a pandemia, muitas lojas físicas tiveram que fechar suas portas, inclusive de grandes redes como Saraiva e Cultura. Assim, a justificativa das livrarias em cobrar essa taxa alta é o fato de ser um importante pilar nessa cadeia, fundamental para a venda. Mas também um pilar frágil, quase ruindo, as livrarias on-line, estão tomando conta desse espaço. E, paradoxalmente, pequenas livrarias estão dentro de uma situação mais confortável do que as grandes, desde que consigam se destacar, por exemplo, oferecendo espaço para lançamentos e pequenos eventos literários.
Esse sistema precário precisa conviver sob a mira de um império estrangeiro chamado Amazon, consistindo tanto em uma salvação como uma nova forma de opressão. Com suas lojas virtuais, essa empresa não possui nenhum livro para vender, vende o que é dos outros, vende, assim, mais do que os outros, pelo preço que quer. Sim, a Amazon faz o preço dos livros caírem, mas é uma ilusão porque nem sempre faz gerar renda às editoras, livrarias ou autores.
Muitos escritores acabam achando mais interessante se autopublicar, ou seja, arcarem eles mesmos com os custos de produção sem a necessidade de intermediários. Dessa forma, eles mesmos ficam com todo o lucro do livro. Como forma de prestar serviços, muitas editoras exploram esse segmento, porém, algumas delas, sem transparência, tentam lucrar em cima dos sonhos de seus clientes. Algumas usam como forma de captar autores a abertura de chamadas de concursos literários, em que o suposto prêmio seria a publicação, porém esta acaba sendo paga pelos autores em alguma cláusula esquecida ou mesmo não citada até o momento de passar o PIX. Outras, ainda, fazem apenas o encaminhamento às gráficas, colocando uma capa, mas se esquecendo de todas as etapas de revisão. Muitas delas, cobrando valores muito acima da qualidade do serviço prestado.
Dentro desse grupo de autores autopublicados, no entanto, há uma imensa parcela que usa o KDP (Kindle Direct Publishing), uma parceria do Kindle/Amazon com autores independentes para disponibilizar suas obras em formato digital. Nesse caso, o autor pode vender seus e-books pelo valor que definir, pagando apenas uma comissão à gigante capitalista. Além disso, pode cadastrar seu livro digital no Kindle Unlimited, plataforma para assinantes da Amazon. Nesse sistema, os leitores pagam uma taxa mensal de R$19,90 para ter acesso a um catálogo, onde estão incluídas obras de autores independentes que registram essa opção ao publicar seus e-books.
Tudo parece muito fácil e barato. O problema está na forma como os direitos autorais são pagos, por página lida, variando conforme o fundo global arrecadado a cada mês e distribuído entre os autores. Quanto mais leituras o e-book recebe, maior será sua participação nesse fundo. No entanto, o valor por página lida costuma ficar em torno de R$0,01. Isso mesmo! Se seu livro tiver cerca de 100 páginas, você ganha até R$1,00 por leitor. Mas se ele for lido pela metade, você receberá apenas R$0,50, pois é proporcional. Bem, nesse caso, será preciso mais de 12.000 páginas lidas por mês para se tirar um rendimento de um salário mínimo e quase 640.000 para se alcançar o salário mínimo necessário.
Há autores independentes que afirmam viver dos livros postados na Amazon. Curiosamente, a maioria é de mulheres. Essas escritoras publicam dentro de certos nichos mais procurados nas ferramentas de buscas. Para chegar a esse ponto, é necessário um longo estudo para se entender as melhores estratégias de divulgação. Em geral, elas fazem parcerias entre si e conquistam públicos de fãs, suas clientelas fixas. Até aí tudo dentro do que já conhecemos das redes sociais, aquela rotina de quem quer ter milhares (ou até milhões) de seguidores seja no Instagram, no Tictoc ou no YouTube.
Talvez o mais problemático esteja na sua produção literária em si, pois são necessárias duas artimanhas fundamentais: escrever livros em ritmo de produção industrial (logo penso em obras que deixam a desejar no quesito qualidade) e se especializar em um segmento literário muito específico e facilmente encontrado nos instrumentos de buscas. No meio dessa rede, destaca-se um gênero muito polêmico: o hot, ou erótico.
Quando se aborda a literatura produzida por mulheres, o erótico pode ser uma libertação, pois o senso comum restringe essa temática às escritoras mais pervertidas e sempre é bom quebrar padrões. Hilda Hilst é um exemplo de autora nacional que usou esse gênero para subverter. A polêmica, portanto, não está quanto ao pudor ou despudor da obra e sim na forma como a temática é abordada.
Então, o que dizer de mulheres que, no intuito de ter seus livros lidos, precisa incorporar em seus textos um padrão favorável à manutenção do machismo e da estrutura patriarcal? Esse é um mal necessário para se enquadrar em um modelo capaz de atender aos requisitos dos algoritmos. As autoras investem em histórias protagonizadas por homens poderosos, em geral na posição de CEO de alguma grande empresa, que irão formar um par amoroso com uma mulher, quase sempre virgem e submissa. O resultado são as mais variadas reescritas de “Cinquenta Tons de Cinza”.
A análise desse fenômeno é ambígua: podemos considerar essa leva de autoras sobrevivendo da produção de seus livros com publicação independente e ancorados na plataforma KDP um ponto alto do processo do ingresso das mulheres no âmbito literário; mas também podemos ver como mais uma vez em que elas precisaram se submeter ao sistema rígido e, nesse sentido, não há motivos para aplausos.
Uma pena que ser escritor ou escritora no Brasil seja assim. Sobre mim, invisto as esperanças em um futuro em que se mudará esta realidade. Acredito na possibilidade de se viver da escrita desde que se invista na formação de novos leitores a partir da educação, da democratização do livro e da valorização da nossa literatura. Minha atitude foi a criação da “Contos de Samsara”, uma revista literária de distribuição gratuita, que já está chegando à sua 5ª edição, com mais de 3.500 leitores e 100 contos publicados de autores nacionais contemporâneos, principalmente mulheres.