Fazendo o meu caminho
Fazendo o meu caminho é artigo de autoria de Silvia Ferreira Lima na coluna Cavando Ideias. Todos os artigos são inéditos e farão parte de uma publicação no formato de livro, após a conclusão da série.
Em um post anterior, eu já comentei que sou canhota e que durante muito tempo os canhotos foram vistos como diabólicos; por isso os pais, os professores, a escola, a igreja, tratavam de forçar as crianças a aprender a escrever com a mão direita. Tive a sorte de nascer depois da segunda metade do século XX e estudar numa escola montessoriana, que foi a que me alfabetizou e ofereceu-me a chance de aprender a segurar o lápis e a caneta, conforme eu desejasse e fosse mais confortável para mim. Bom, realmente, não foi o mais confortável, afinal a sociedade que deveria ter produzido móveis e objetos adaptados aos canhotos, como tesouras, facas, carteiras estudantis etc.
Caminho que tracei para mim
Comecei a tratar disso, porque, neste caso, escrevo o caminho que eu tracei para mim. Vim ao mundo com diferenças de todas as ordens. Demorei a nascer porque minha mãe não tinha dilatação e fui a primeira filha. Entrei em sofrimento, mas o que afetaria meu cérebro, afetou a diferença de tamanho e habilidade dos meus dois lados. O lado esquerdo é maior e mais desenvolvido, possui dois centímetros mais do que o outro. Por isso, sempre manquei e demorei a me equilibrar para andar.
Também nasci com os joelhos voltados para dentro e pés chatos. Naqueles anos, existia uma bota ortopédica pesada, presa a dois ferros até minhas coxas, que eu era obrigada a usar enquanto dormia. Até hoje, minha mãe diz que eu vivia caindo e que cheguei a cair de boca no chão ficando com a cara inchada. Toda vez que ela olha uma fotografia antiga minha, que eu até acho bonitinha, ela repete que eu estava com a cara inchada. Sinceramente, não vejo nada disso, mas mãe é mãe.
Claro que minhas diferenças não eram apenas minhas, eram genéticas. Meu avô paterno foi canhoto e fizeram ele ajoelhar no milho para que ele aprendesse a escrever com a mão direita. Ele mesmo me contou isso antes de morrer, mais ou menos em fins da década de 70. Se eu não me engano, meu avô Ângelo morreu em 1978. Quando eu estava no começo da adolescência, eu e ele conversávamos muito, porque ele dizia o quanto eu me parecia com minha avó materna. Bom, eu me parecia com ele também.
Meu caminho foi construído por eu ter nascido na família em que nasci, tido os pais que tive, encontrado as dificuldades que encontrei, enfim. Escrever sobre isso agora, só alivia as tensões guardadas por tanto tempo. E várias frases repetidas nunca mais se apagaram da memória. Uma delas é a que meu pai sempre repetia: “Quando você mais precisa de alguém, não poderá contar com ninguém. É sempre melhor resolver seus problemas sozinha.” Um pouco antes do meu pai morrer, eu repeti estas palavras para ele, que me disse: A gente muda e aprende. Como a me dizer que ele não estava correto ao me dizer isso. Não sei. Realmente não sei. A verdade é que nunca contei totalmente com ninguém nem desabafei tudo com ninguém. Sempre procurei alternativas diversas para resolver meus problemas. Aprendi a exigir muito de mim mesma.
Estudar sempre foi o objetivo
Estudar sempre foi o objetivo e a direção da minha vida. Primeiro, porque eu via meu pai, com uma estante enorme de livros de obras clássicas. de mitologia, de literatura, e nos últimos tempos de filosofia. Existia uma grande coleção de obras clássicas em que eu podia ler Decamerão; Eugênia Grandet; Werther; A Divina Comédia; O Paraíso Perdido; Suave é a Noite; Mobby Dicky; entre outros. Li as obras de Machado de Assis e José de Alencar , quando estava na escola. Aliás, como concluí o Fundamental I numa escola franciscana, também li a Bíblia. Mais por curiosidade do que por seguir ordens ou preceitos de qualquer um.
Tínhamos aula de religião, mas quem a ministrava era a orientadora pedagógica da escola, que fazia nós lermos Fernão Capelo Gaivota, além de outras obras que talvez hoje fossem classificadas como livros de auto-ajuda. Afinal, eles são muito bons, principalmente quando passamos por momentos de crise.
Meu pai adorava silêncio e criticava muito as telenovelas que funcionavam no começo da noite. Aliás, criticava sempre! Isso funcionou para fazer com que eu e minha irmã não gostássemos de assistir a programas de televisão. Aliás, parei de assistir no final da década de oitenta, quando eu já trabalhava, dando aulas para Fundamental II, tinha que preparar aulas e fazia faculdade à noite. Com minha irmã não foi muito diferente, só a profissão que mudou. Ela estudava de dia, trabalhava à tarde e estudava à noite. Provas e trabalhos eram feitos de madrugada. Passamos a dormir bem menos! Mas a cobrança por responsabilidade, fazer o melhor para conseguir o que queríamos, estava sempre dentro de nós.
Além de ser canhota, eu tive sarampo em outubro de 1971. Foi muito muito forte. Mesmo tendo sido vacinada. Eu tinha seis anos, mas achei que ia morrer. Fiquei um mês no hospital, tive pneumonia, bronquite, febre constante a ponto de ficar com os lábios queimados e em carne viva. Minha irmã quando foi ao hospital me visitar ficou na maior alegria, porque ficamos muitos dias sem nos vermos. Acabei me recuperando. Voltei à escola para fazer uma recuperação. E, no método montessori, as atividades diárias eram em fichas de exercícios, que cada aluno fazia no seu ritmo. Porém, voltei para a escola com tanta vontade, que mais rápido do que era esperado, terminei as fichas e perguntei o que eu deveria fazer então. Só aí descobri que eu era muito rápida para raciocinar e aprender. Mas o ritmo individual de cada aluno é um fato.
Volta dos alunos depois da pandemia
Acho que eu esperava que meus alunos voltassem da pandemia com mais vontade de aprender. Isso ocorreu com vários, mas não com todos. Em geral, como se tratam de alunos de Fundamental II, muitos voltaram questionando a escola, os professores, as atividades, como se todos estivéssemos errados em tentar lhes ensinar algo. A internet, o twitter, o tik tok e outros aplicativos de celular já tinham tomado seus tempos e atenção. A partir daí, tornou-se um desafio jamais estudado ou calculado para competir com a atenção dos alunos. Para ensinar-lhes o respeito, que infelizmente eles não têm com nada nem ninguém. Parece que em casa, durante a pandemia, eles só fizeram o que queriam e no momento em que queriam. Não conviveram com outros da mesma faixa etária nem foram orientados a se respeitar. A se comportar em grupo. A obedecer o espaço da escola e sua organização.
Mesmo que a equipe pedagógica tenha preparado bolas de basquete e futebol, cesta de basquete, quadra de futebol, gibis para leitura nos momentos de intervalo, organizamos até mesmo um espaço de biblioteca, que não estava organizado antes, devido à reforma pela qual a escola passava. Preparamos uma sala com computadores e internet. Deixamos até mesmo que eles colocassem música para dançar no momento do intervalo. Estas mudanças foram fundamentais para eles terem espaço de brincadeira e solidariedade, uma vez que, na sua maioria, eles não possuem este espaço, nem mesmo são educados para utilizá-los corretamente ou ainda para respeitarem a vez de outros colegas.
Comecei a tratar da minha vida, de como a escola e a leitura foram importantes para minha formação enquanto sujeito. Da mesma maneira, é assim que eu sempre vejo o espaço de formação para as crianças e adolescentes. Pode parecer ingenuidade, se imaginar as oportunidades que eu tive e que as crianças de escola pública têm. Neste ponto, fui privilegiada. Mas, fui educada para estudar sempre. Respeitar sempre. Não importa se o professor estivesse certo ou errado. Afinal, nunca se ganha no berro. Ganha-se na conversa e nos argumentos. Diálogo é fundamental. Sempre, em qualquer momento, com qualquer pessoa. Agressão nunca leva a um bom entendimento ou à aquisição de qualquer direito.
(Vai continuar)