Literatura Feminina x Literatura Produzida por Mulheres
Literatura Feminina x Literatura Produzida por Mulheres é artigo de Michele Machado Fernandes em sua coluna semanal na Expedição CoMMúsica.
Você já parou para pensar que literatura feminina e literatura produzida por mulheres não se referem necessariamente à mesma coisa?
Se você acompanha esta coluna, pode já ter percebido que o segundo termo é usado com muito mais frequência e existe uma explicação para isso. Sendo assim, no artigo de hoje, vou tentar explicar a diferença entre essas duas formas de se referir à literatura ligada às mulheres.
Antes de entrar nos conceitos, porém, é necessário pensar sobre um importante aspecto:
A demora para as mulheres ingressarem no mercado editorial
Apesar de a primeira pessoa a ter um texto reconhecido em seu nome ser uma mulher (Confira no artigo: https://commusica.com.br/2021/12/03/conta-comigo-a-primeira-escritora/), essa não foi uma tendência a ser seguida. Na Antiguidade, os nomes femininos são raros e, com o avançar dos séculos, pouca coisa muda, até chegarmos ao século XVIII, quando surgem nomes como Ann Radcliffe, Olympe de Gouges e Mary Wollstonecraft. No Brasil, Bárbara Heliodora é um exemplo de autora apagada pelo tempo. Muitas das obras das pioneiras da literatura são de difícil (ou impossível) acesso, assim como a biografia dessas escritoras é precária.
Uma pesquisa realizada pela UNB em 2017 demonstra que 70% das obras publicadas pelas grandes editoras entre 1965 e 2014 foram produzidas por homens. Estamos aqui falando das obras mais recentes, ainda consideradas contemporâneas, ou seja, livros publicados nos últimos setenta anos. Consequentemente, o ingresso das mulheres na literatura ainda é uma ação em andamento.
Dito isso, vamos aos conceitos:
LITERATURA FEMININA
Esse é um termo impreciso. Ele poderia muito bem abarcar a outra expressão. O problema é que há uma ambiguidade por ser usado o adjetivo “feminina”. A posição desse adjetivo coincide com a de expressões como:
Literatura infantil
Literatura vitoriana
Literatura romântica
Literatura erótica
Os termos citados acima são apenas exemplos, pois a lista seria infinita. O importante aqui é observarmos que esse paralelismo não é positivo quando se fala em abrir espaço para as escritoras.
Vamos analisar mais a fundo:
O termo “literatura infantil” não se refere à literatura escrita por crianças e sim aos livros dirigidos a elas. Assim, “literatura feminina” poderia muito bem se relacionar a obras escritas para um público feminino.
Esse entendimento é bastante perigoso, pois, por muito tempo, desde que as mulheres começaram a ter acesso a um mínimo de escolaridade e pudessem ler, surgiram obras para lhe servir de passatempo e, de quebra, servir como doutrinação. As mulheres lerem poderia ser um perigo. Afinal, se elas lessem o mesmo que os homens, poderiam começar a pensar como eles e tentar ocupar os mesmos espaços, não é mesmo?
Muitos autores dedicaram suas obras a essa categoria. Em geral, essa literatura se refere a romances açucarados em que as personagens mulheres desempenham o papel conforme interessa ao patriarcado: mocinhas boazinhas à espera de seus pares, perdoam os erros deles, se necessário, e, quando fogem ao perfil ideal de uma mulher (dentro dos conceitos tradicionais e ultrapassados), a morte passa a ser um bom desfecho.
Machado de Assis, com seu característico sarcasmo, se valeu dessa estrutura para cutucar a sociedade da época. Usou em algumas de suas obras a palavra “leitora” como vocativo. Dessa forma, colocava como suposto alvo de suas palavras o público feminino, quebrando o paradigma da leitura restrita aos romances comportados descritos acima. Isso não apenas confirma o fato de a literatura feminina ter uma conotação ideológica como também revela que não satisfazia a todas as mulheres.
Os demais termos citados (vitoriana, romântica e erótica) se referem estritamente a nichos, ou seja, quando vamos a uma livraria com o desejo de ler algo de um tema ou abordagem específica e buscamos a prateleira que coincide com nossa aspiração. Quero ler literatura feminina, como poderia querer terror ou fantasia.
Esse conceito abre uma competição injusta das autoras mulheres com N outras possibilidades de temáticas. Também devemos ter em mente que nossa escrita não se refere a um assunto em específico, embora abarque narrativas e perspectivas incomuns à escrita produzida por homens.
LITERATURA PRODUZIDA POR MULHERES
Ao usarmos esse termo, deixamos claro que não estamos nos referindo a um nicho de mercado específico. Poderia também ser usada com o mesmo propósito a expressão “literatura escrita por mulheres”. Eu, particularmente, acho a palavra “produzida” muito boa, pois as escritoras, muitas vezes, precisam recorrem à autopublicação para conseguir levar sua obra aos leitores. Ou seja, elas não apenas escrevem, mas participam do processo de produção de seus livros.
No mês de junho, participei de uma mesa redonda na Mostra Literária de Conselheiro Lafaiete, onde fui indagada se eu concordava com a ideia de a literatura produzida por mulheres ser diferente da produzida por homens, sendo possível seu reconhecimento como um nicho de mercado. Apesar de na explicitação anterior eu tentar desconstruir essa visão, no evento, eu apresentei dois cenários, um ideal e outro real.
Cenário ideal:
Nessa perspectiva, devemos levar em conta o fato de que as mulheres são tão capazes de escrever bons livros quanto os homens. É um dado óbvio, porém precisa ser dito porque, por séculos, fomos consideradas inferiores intelectualmente e, por isso, menosprezadas. Obviamente, o acesso das meninas à educação foi posterior e esse fato influencia essa linha de pensamento.
Hoje ainda há quem observe os números, como os da pesquisa citada no início desse texto, e interprete de duas maneiras equivocadas:
Possibilidade 1: As mulheres não escrevem textos que interesse às editoras, ou seja, sua escrita não é tão boa quanto à dos homens.
Possibilidade 2: O número de mulheres escritoras é muito inferior ao de homens.
A realidade talvez hoje ainda não alcance as estatísticas, mas é visível para quem acompanha escritoras em coletivos ou redes sociais. Nosso número é imenso e talvez até maior do que o de homens. A qualidade de algumas obras é digna de importantes premiações, falando agora como crítica literária. No entanto, ainda há resistência como já demonstrei em outros artigos.
Com isso em mente, podemos deduzir que ainda estamos longe do cenário ideal.
Cenário real:
No presente momento, as mulheres ainda estão em busca de seu espaço e a boa notícia é que estamos conseguindo penetrá-lo. Claro, é preciso destacar: o nascimento de um espaço para a literatura produzida por mulheres já teve início, estamos no meio de um trabalho de parto, mas um parto à fórceps.
Esse processo é produto de muitas iniciativas como editoras que estão se especializando na publicação de mulheres ou abrindo novos selos exclusivos às escritoras, clubes de leituras de obras produzidas por mulheres e coletivos de autoras que se apoiam, trocam experiências e se aprimoram juntas.
Sendo assim, neste momento, precisamos colocar nossas obras como nicho sim. É preciso entrar em uma livraria e buscar pela prateleira das mulheres, deixando claro a quem vende livros nosso desejo de ler autoras. O mercado livreiro precisa entender que queremos ser publicadas e lidas e, sobretudo, que há público para nossas obras. Vamos, por algum momento, competir com outros nichos, como terror, fantasia, erótico, infantil, etc. Estaremos, em paralelo, garantindo uma nova compreensão: nós produzimos terror, fantasia, erótico, infantil, etc. Fazemos isso com competência e, sim, merecemos estar em todos os espaços.
Reflexões importantíssimas! Ótimo texto!