Cavando ideias • Rolando parte 4
Cavando ideias • Rolando parte 4 integra uma sequência de quatro artigos da coluna de Silvia Ferreira Lima. Apresentamos a parte final, 4:
Saí da China, esperando chegar às cidades dos Dogdes e vender minha gravuras impressas. Mas no caminho, o tempo, a umidade e as condições atmosféricas não eram tão saudáveis quanto na China. Não havia tanto respeito aos seres vivos nem à natureza. Além disso, as condições de higiene eram piores do que as condições nas quais eu vivia. Por isso, acabei adoecendo. Não encontrava ninguém que falasse chinês a não ser alguns colegas, que também ficaram doentes na viagem e acabaram morrendo.
Senti muitas saudades do meu trabalho no cemitério e da minha vida com o Senhor, porém aquela maluca da senhora sua esposa, iria me colocar em dificuldades e eu acabaria no meio de um escândalo, ou melhor, de uma grande desonra. É verdade que eu era órfão. Mas não gostaria de levar sofrimento àqueles de quem eu gostava. Principalmente, o Senhor, com quem eu aprendera tanto sobre o ofício. Só que quando abri os olhos em Veneza, eu já estava muito doente. Então, fui largado numa das ruas de Veneza e um gatuno levou todos os meus pertences. Doente, ferido, sem falar italiano. Tentei andar e pedir ajuda, mas fui largado numa gôndola virada no meio da noite. Logo, acabei morrendo afogado, sem ninguém para zelar pela minha memória.
Quando abri meus olhos novamente, eu era um bebê, ou melhor, uma bebê de uma costureira e bordadeira. Assim, meu destino já estava traçado. Eu costuraria e bordaria como minha mãe, minhas tias e minha avó. Nos primeiros anos, eu fui crescendo, aprendi a andar, comecei a falar e gostava de brincar de roda. Mas minha infância durou uns dez anos e já estava trabalhando com costuras, vestidos de festa, bordados e pedrarias. Trabalhávamos praticamente durante o ano todo para prepararmos as ricas vestimentas do Carnaval Veneziano. Fazíamos trajes magníficos, que eu sonhava vestir e sair mascarada, visitar o palácio e não ser reconhecida.
Aos quinze anos, quando os homens começaram a me olhar diferente, eu fiz uma brincadeira destas. Juntei retalhos e pedaços que sobravam e não eram requisitados pelos nobres que encomendavam suas vestes e costurei um rico traje para mim. Preparei uma máscara maravilhosa, com pedrarias que eu passara anos catando e recolhendo do meio das costuras e concluí minhas vestes. Fui ao palácio sem ser observada. Aquele carnaval foi espetacular!
Encontrei um arlequim galante, que me tirou para dançar. Nós nos divertimos durante a noite toda. Até que eu resolvi fugir antes das doze badaladas do relógio, afinal, meia-noite era sempre um má presságio, além de trazer insondáveis perigos para uma moça. Entretanto, fui seguida. Tentei me esconder nas sombras, nos postes, nas pontes, nas fontes, regatos, enfim, qualquer espaço que houvesse no meio do caminho. Até que consegui descobrir que era um dos meus tios. Por isso, resolvi tirar a máscara e me identificar, mas foi então que ele me agarrou à força. Rasgou a roupa que eu preparara, me espancou até que eu caísse sem conseguir andar e deixou-me esvaindo em sangue.
Nisso, apareceu um casal de joalheiros que me encontrou naquelas condições e resolveu me ajudar. Fui carregada para a casa deles, que chamaram um médico de família para cuidar do meu bem-estar. Fiquei quase um mês acamada até me recuperar. Daí, perguntaram quem eu era e o que fazia. Como tinham sido bondosos comigo, eu lhes contei toda a verdade. Então, resolveram me ajudar.
A partir deste dia, comecei a trabalhar com eles na joalheria, comecei a entalhar ouro, prata e pedras preciosas para fazer joias para os nobres e ricos comerciantes. Eu estava mais feliz do que onde eu vivia até aquele momento. Além do mais, eles me tratavam como filha. E acabaram me adotando mesmo. Eu os ajudei na saúde e na doença, até que o filho do meu tio comigo cresceu a aprendeu a chamá-los de avós. Cuidei de minha madrasta até a morte. E ajudei a cuidar do meu padrasto que não conseguia andar. Eu e meu filho nos tornamos novos joalheiros na cidade, até começarem a perseguir os judeus, o que não éramos, porém meus pais adotivos eram.
Por isso, saímos das cidades estado em busca de um canto mais sossegado e distante onde pudéssemos plantar e criar galinhas e vacas. Meu filho acabou se casando com uma filha de camponeses e também se tornou um camponês. Então, ficamos longe das luzes de festas e das pedras brilhantes dos ricos e esnobes para vivermos felizes no campo, num pequeno povoado ao sul da Itália.
Assim, vivemos tranquilos o resto de nossas vidas. Tive netos e netas. Vi minha nora morrer de parto e meu filho se casa novamente. Chegamos a ter a casa cheia de crianças. Eu me tornei tão bondosa e generosas a senhora joalheira que me cuidara. Já da minha mãe, das minhas tias e dos meus tios, eu não tive boas notícias. Minha mãe, assim como eu, fora espancada na rua até a deixarem sem vida. Minha tia descobriu o mal caráter que meu tio era e resolveu deixá-lo, mas ele a matou antes disso. Minha avó morreu de tristeza. Já minha outra tia ficou viúva e virou a costureira predileta no castelo. Meu tio chegou a confessar no dia seguinte o que fizera comigo. Minha mãe bateu nele com pau de macarrão até deixá-lo todo roxo. Acho que por isso, deve ter sido este tio que preparou uma armadilha para ela.
Descobri tudo isso porque encontrei com uma conhecida depois de alguns meses vivendo com meus padrastos. Ela me viu bem e feliz e me desejou sucesso. Disse que estava indo para o sul, para o campo. Por isso, que tive esta ideia de ser fazendeira, ao fugir da perseguição aos judeus. Que absurdo que as pessoas malucas fazem.
À noite, enquanto olhava as estrelas e a luz, eu pensava na loucura em que algumas pessoas vivem. Então, senti muitas, mas muitas saudades de um povo, num tempo, num lugar que eu nem sabia que existia. Novamente, quando eu dormia, eu sonhava com minha família original. Eu os via com tanto amor e carinho e lhes perguntava quanto tempo a mais ficaríamos juntos e eu teria que me sujeitar às loucuras daquele mundo?
Claro que no dia seguinte, eu já não lembrava de nada. Apenas sentia felicidade e paz tão profundas, que eu achava que era devido à noite de lua cheia, ou à primavera, ou ao brilho e fluxo das águas. De qualquer modo, eu sempre sentida que não estava só e que iria encontrá-los em algum momento e lugar.
Eu apenas conseguia sentia saudades. E, é claro, gratidão. Uma vez que agora estava cercada de pessoas boas, que me amavam e que eu amava. E todos nos fazíamos felizes, sempre agradecendo termos uns aos outros. Ainda restava a esperança!