Você já leu uma autora autista?

Você já leu uma autora autista?

Você já leu uma autora autista? A pergunta-título do artigo desta semana contém um desafio de entendimento sobre autismo. Muitas pessoas consideram um transtorno incapacitante, em que o indivíduo não consegue se comunicar e, claro, se não pode falar, muito menos escrever. Também pode passar pela cabeça que essa é uma condição peculiar às crianças, quando se cresce, o autismo some, afinal só se fala sobre crianças com autismo? Ou pior, estamos falando de mulheres, quando estatisticamente o transtorno do espectro autista atinge principalmente pessoas do sexo masculino. Esse é o tema da coluna Conta Comigo!, de Michele Machado Fernandes nesta semana, na Expedição CoMMúsica.

 

 

São Paulo, 28 de abril de 2023 – Dito isso, vamos desconstruir esses três conceitos enquanto você tenta se lembrar se já leu uma autora autista e quantas foram. Primeiramente, vamos abordar a ideia de senso comum de que o autismo é incapacitante. Em segundo lugar, é possível que a primeira impressão seja a de o autismo seja uma peculiaridade típica da infância e, por fim, o autismo em mulheres.

 

Há diferentes graus de suporte no autismo

Papel de parede digital com mulher de chapéuTalvez a ideia mais difundida e, por isso, em primeira abordagem, é a de que o autismo pode ser muito incapacitante, principalmente quando falamos no grau de suporte 3 ou autismo severo.

Evidentemente, uma pessoa que não consegue se comunicar com o mundo chama a atenção e, através dessas pessoas, se começou a traçar um perfil do que viria a ser o espectro autista.

Estudo acadêmico de 1943, de autoria de Leo Kanner, um psiquiatra austríaco, foi o primeiro estudo determinando o autismo como um transtorno independente de outros, pois até então o autismo estava atrelado à esquizofrenia.

Apenas em 1994, a comunidade médica legitimou os casos mais leves de autismo, na época, com o nome de síndrome de Asperger.

Desde 2013, no entanto, se aboliu essa diferenciação e passou-se a entender que autismo é uma coisa só, podendo variar as necessidades de suporte, ficando estabelecido o termo Transtorno do Espectro Autista (TEA) como um grande guarda-chuva capaz de abarcar a ampla diversidade de características.

Um autista é diferente do outro: pode falar ou não, pode olhar nos olhos ou não, pode ter deficiência intelectual ou não, pode ter muitos amigos ou não, pode conseguir trabalhar ou não, pode gostar de andar nas pontas dos pés ou não…

 

Cinco condições para a confirmação do Transtorno do Espectro Autista (TEA)

Sendo assim, algumas pessoas concluem: então todo mundo é um pouco autista – também não! Segundo o DSM-5, Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, para uma pessoa se enquadrar no espectro, é necessário atender a essas 5 condições:

a) Limitação na reciprocidade emocional e social, com dificuldade para compartilhar interesses e estabelecer uma conversa: Nesse critério, entram todas as dificuldades que o indivíduo possa ter na sua interação com outras pessoas. Pode entrar o fato de conseguir ou não falar, de fazer ou manter amizades, de conseguir ou manter empregos, só para dar alguns exemplos.

b) Padrões repetitivos e restritos de comportamento, atividades ou interesses: Nesse caso, estamos falando de fixação por algum tipo de objeto ou por um assunto (hiperfoco), necessidade de rotina ou rituais pessoais e até mesmo de sensibilidade sensorial.

c) Os sintomas devem estar presentes precocemente no período do desenvolvimento, porém eles podem não estar totalmente aparentes até que exista uma demanda social para que essas habilidades sejam exercidas, ou podem ficar mascarados por possíveis estratégias de aprendizado ao longo da vida. Esses sintomas causam prejuízos clínicos significativos no funcionamento social, profissional e pessoal ou em outras áreas importantes da pessoa.

d) Esses distúrbios não são bem explicados por deficiência cognitiva e intelectual ou pelo atraso global do desenvolvimento.

Nos últimos anos, em especial no dia 02/04, data reservada à conscientização sobre o TEA, somos bombardeados com frases que, em maioria, colaboram com o nosso entendimento sobre o espectro.

No entanto, o fato de vermos tantas pessoas se referindo a crianças e pouco sabermos sobre os autistas já crescidos pode nos dar a falsa ideia de que os sintomas desaparecem quando a idade avança.

É importante dizer: a origem desse transtorno é, em 98% dos casos, genética, ou seja, não é possível modificar o DNA de uma pessoa, portanto não há cura e, sequer, é uma doença.

O indivíduo pode nascer com os olhos azuis ou castanhos, com a pele branca ou preta, com o cérebro típico ou atípico. Sim, os autistas têm um funcionamento cerebral diferente do comum, são assim chamados como neurodivergentes (grupo no qual atualmente também se inserem outros transtornos do neurodesenvolvimento, como o TDAH, ou transtornos de personalidade, como borderline, ou transtornos mentais, como transtorno de ansiedade), contrastando com os neurotípicos (pessoas com o desenvolvimento padrão do cérebro).

No entanto, quanto antes se fecha o diagnóstico, maiores as chances de a criança desenvolver competências necessárias para a sua autonomia. Intervenções em casa ou na escola, acompanhamentos com fonoaudiólogo, terapeuta ocupacional, neurologista, fisioterapeuta, enfim, uma equipe multidisciplinar que irá dar apoio à criança e à família, tudo isso fará diferença no desenvolvimento da criança.

Portanto, falar sobre crianças autistas faz parte de uma luta real e necessária.

O histórico apagamento do adulto autista

O apagamento do adulto autista é um efeito colateral relacionado à história da saúde mental no nosso país e também fora dele.

Há menos de um século, ainda depositávamos pessoas que divergissem do nosso consenso de normalidade em hospícios, onde esses pacientes passavam por todo o tipo de violência, além de serem excluídos de suas famílias e da sociedade.

Inclusive, ao falar da abolição do termo síndrome de Asperger, em certa medida (e concordo com esse ponto de vista), consideramos uma homenagem inapropriada ao médico nazista, que, embora tenha contribuído na fase de determinação do autismo como uma patologia, os meninos sobre o qual debruçou os seus estudos foram encaminhados aos campos de extermínios, colocando-se em prática a política higienista alemã, intolerante com atipicidade.

Ainda colhemos os frutos dessas agressões com olhares capacitistas e falta de empatia quando o assunto é saúde mental.

 

A questão de gênero e o apagamento das mulheres autistas

 

Mas quando falamos do apagamento de mulheres autistas, o assunto é ainda mais crítico.

Os estudos de Kanner e de Asperger foram feitos a partir de meninos. Na sequência, a medicina misógina da época deu continuidade aos estudos sempre tendo como alvo de suas pesquisas apenas pessoas do sexo masculino, fato comum não apenas no campo do TEA.

O resultado desse percurso de pesquisas acadêmicas foi a criação de protocolos de diagnóstico sempre voltados a como o autismo se fazia presente entre homens.

Uma mulher com autismo foi quem destacou a presença do autismo também entre mulheres. O nome dela: Temple Grandin.

Foi a pioneira em chamar a atenção para dois aspectos importantes: mulheres podem, sim, estar no espectro e mais, autistas podem ser funcionais, inteligentes e bem sucedidos em suas áreas, rompendo com uma série de estereótipos.

Um desses estereótipos, ainda reproduzido à exaustão pela indústria audiovisual, privilegia a representação de homens e meninos, com estereotipias muito visíveis, normalmente se valendo dos raros casos de savantismo, termo usado para designar pessoas que apresentam, concomitantemente, deficiência intelectual e alguma habilidade de padrão acima do comum, para dar vida a personagens representativos de casos de TEA extremamente raros na vida real.

Pesquisas mais atuais mostram uma prevalência de mulheres no espectro autista oscilando entre três ou quatro meninos para cada menina, uma distância que diminui com o passar dos anos.

Infelizmente, o gênero feminino ainda passa por dificuldades para conseguir o seu diagnóstico.

As meninas, muitas vezes, são submetidas aos antigos testes feitos para meninos, retardando o seu laudo. Já as mulheres adultas são frequentemente subdiagnosticadas, ou seja, são diagnosticadas por suas comorbidades como ansiedade ou síndrome do pânico ou, por mal entendimento das suas características autísticas, levando a diagnósticos de bipolaridade ou fobia social, por exemplo.

É importante salientar que não existe diferença de gênero no TEA, pois os sintomas são os mesmos entre homens e mulheres, entre meninos e meninas. Muda, sim, a forma como se apresentam.

Um exemplo da diferente forma de apresentação é que homens podem apresentar movimentos repetitivos muito evidentes, como balançar os braços ou sacudir a cabeça para frente e para trás, enquanto as mulheres, com um masking, capacidade de mascarar os seus sintomas mais evidentes, mais apurado pode fazer movimentos discretos com os dedos ou morder a língua com a boca fechada. Essas diferenças provavelmente advêm da forma distinta como a sociedade cria os diferentes gêneros, cobrando um comportamento mais rigoroso e menos aparente das meninas.

 

Ler sobre o autismo desmitifica e nossa pergunta é ainda mais enfática: Você já leu uma autora autista?

Alguns livros que podem ajudar a desmitificar o autismo em mulheres são:

‘Pretending to be normal’, de Liane Holliday
‘Autismo ao longo da vida’, de Deborah Kerches
‘Spectrum Women’, de Barb Cook
‘O cérebro autista’, de Temple Grandin

 

Você já leu uma autora autista? Conta Comigo!

Para mim, entender que o autismo pode se apresentar de forma peculiar nas mulheres foi uma virada de chave. Encontrava facilmente informações sobre a afinidade dos autistas com o mundo das exatas e com os números, mas, sobre escrita, travava na falta de compreensão e na literariedade, o que definitivamente me fazia sentir fora do espectro, mesmo com um significativo déficit de comunicação.

 

Você já leu uma autora autista?

Intuitivamente, tomei um caminho comum a muitas mulheres com autismo, escrever para conseguir me expressar.

Sim, a escrita é uma característica marcante entre mulheres com TEA. Como tudo no espectro, não se pode generalizar, nem toda autista escreve, mas é algo bastante frequente.

O meu diagnóstico, tendo em vista todas as dificuldades levantadas nesse artigo, só saiu no dia 06 de março deste ano, aos 43 anos, depois de uma jornada de anos, passando por vários profissionais da saúde e ouvindo frases como “você não pode ser autista, pois olha nos olhos das pessoas”, “deve ser só fobia social” e um aniquilador “na sua idade, não importa mais um diagnóstico de autismo, porque, bem ou mal, você já sobreviveu”.

Infelizmente, a desinformação sobre TEA está presente também entre os profissionais de saúde, por isso, disseminar conhecimento sobre o tema tem sido uma pauta dentro da comunidade de pais atípicos ou das próprias pessoas com autismo.

No entanto, muita coisa tem mudado depois do laudo. Agora, tenho encaminhamento para tratamentos eficazes, tenho direitos ao que antes não poderia acessar e uma melhor compreensão das minhas diferenças.

Voltando à pergunta do título, minha visão é essa: se você costuma ler mulheres, provavelmente, sim, você já tenha lido mulheres autistas, mesmo que não tenha ficado sabendo, mesmo que a própria autora não saiba.

Os meus leitores, por exemplo, não poderiam desconfiar por que aquela personagem era uma alienígena (meu sentimento em relação ao mundo), nem eu tinha ideia da dimensão dessa metáfora.

Estou relendo todos os meus escritos e descobri sempre ter narrado o meu autismo, mesmo sem consciência disso.

O meu jeito ímpar de olhar o mundo, com o meu cérebro atípico, está lá registrado.

Então, volto a falar o que sempre digo: precisamos diversificar as nossas leituras para compreender outros olhares sobre o mundo. Neste caso, o olhar neurodiverso.


Em breve, Michele Fernandes e Tuca, a Elizabeth Del Nero, estarão em programa ao vivo na Rádio Expedição CoMMúsica.

4 thoughts on “Você já leu uma autora autista?

  1. Monique Bonomini says:

    Que texto maravilhoso! Adorei, muito obrigada por traze-lo ao mundo. Obrigada por falar em nome de tantas de nós! Vamos juntas!

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  2. Cris Rosa says:

    Eu adorei ler este texto, e conhecer um pouco mais sobre ser atípica.

    Responder

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