O que aprendi lendo mulheres do século XIX

O que aprendi lendo mulheres do século XIX

O que aprendi lendo mulheres do século XIX, artigo de Michele Machado Fernandes em sua coluna semanal Conta Comigo! na Expedição CoMMúsica.

 

Cartaz da coluna Conta Comigo, com foto do rosto de mulher
O que aprendi lendo mulheres do século XIX

 

Desde 2020, ler mulheres se tornou uma constante nas minhas metas de leitura. No ano anterior, 2019, caiu a ficha desse lapso literário, e eu precisava consertar isso com urgência. O resultado foi: dos mais de 100 livros lidos naquele ano, metade foi escrito por autoras de vários lugares do mundo. Um adendo: 2020, em virtude da pandemia, tive o maior número de leituras da minha vida, algo parecido com os violinistas afundando com o Titanic, sem conseguir parar de tocar.

A meta de que pelo menos 50% das leituras deveriam ser de livros com autoria feminina se repetiu em 2021. No final do ano, as mulheres representavam 59% dos livros lidos. Já no ano passado, esse número atingiu incríveis 87% e este ano estou me esforçando para não deixar de ler homens, afinal a ideia nunca foi exterminá-los.

Busquei esses dados nos meus registros de leituras, onde faço anotações, gráficos, métricas, metas, isso me ajuda a decidir as próximas compras de livros e definir os meus parâmetros de leitura. Bem, a finalidade aqui não é transformar o hábito de ler em algo chato e cheio de rigor, mas sim fazer uma análise do que as mulheres andam escrevendo e poder compartilhar essas descobertas.

 

Jane Austen e o novo significado da palavra “amor”

Nessa brincadeira, comecei buscando as clássicas, aquelas mulheres que escreveram quando o seu único direito era casar e ter filhos. É um verdadeiro milagre a existência de tantas mulheres que tenham conseguido documentar o seu estilo de vida, os seus tormentos e até mesmo ter a ousadia de publicar, embora muitas adotassem pseudônimos masculinos.

 

Imagem do rosto de Jane Austen, em 1870

 

Entre essas mulheres fantásticas, li da mais famosa delas, Jane Austen, “Razão e Sensibilidade” (1811), “Orgulho e Preconceito” (1813) e “Persuasão” (1817). A autora, com uma escrita perspicaz e irônica, retrata um período muito interessante pelo qual passava a Inglaterra do início do século XIX, quando as colônias eram oportunidade de enriquecimento e já não era tão necessário ser da nobreza para ser considerado um bom partido.

A palavra “amor” vem como um atributo para tornar legítimo um casamento que não necessariamente era definido por um acerto entre os pais do casal. Assim, as protagonistas dessa autora buscam escapar de casamentos arranjados e serem elas mesmas capazes de definirem o seu destino no território amoroso, uma novidade em termos de independência feminina.

 

Mary Shelley e o monstro que se renova através dos tempos

Outra grande escritora e uma das minhas preferidas dessa safra é Mary Shelley, autora do famoso “Frankenstein ou O Prometeu Moderno” (1818), uma obra genial do meu ponto de vista, o perfeito clássico, atualizando-se mais e mais com o passar dos anos.

Pintura de Mary Shelley

 

A interpretação desse livro pode ser feita de muitas formas. Recomendo a análise incrível presente no livro “A Política Sexual da Carne” (1990), de Carol J. Adams, que funde a trama a um questionamento sobre à alimentação vegetariana/vegana em oposição à carnívora.

Outro viés muito interessante de leitura é sob o ponto de vista da (possível) homossexualidade de Victor Frankenstein, reprimida em face dos valores da época, mas não o bastante, o que o faz gerar o monstro.

No entanto, o ponto de vista mais imparcial entre a crítica se refere ao potencial feminista da obra, quando se entende o monstro como um análogo da mulher em busca de espaço numa sociedade cheia de represálias ao seu desejo.

 

Irmãs Brontë e a independência feminina

Fotografia das 3 irmãs Brontë
Fonte: https://istoe.com.br/a-saga-literaria-das-irmas-bronte/

 

Ainda dentro dessa safra inglesa, as irmãs Brontë são outro marco da literatura. Li “O Morro dos Ventos Uivantes” (1847), de Emily Brontë, mais uma obra sensacional que rompe com o clichê da mocinha e do herói, com personagens nada simpáticos e um amor beirando o terror. Emily foi considerada ousada demais para sua época, gerando instabilidade até mesmo dentro da família. Ao que se sabe, Charlotte, a irmã mais velha, teria reprovado o livro.

Também li “Agnes Gray” (1847), de Anne Brontë, que embora traga um enredo mais suave e dentro do esperado para uma obra escrita por mulher em comparação à produzida por sua irmã, o ponto fundamental dessa obra é a busca por independência da protagonista, que não pretende casar e sim ter uma profissão, passando por muitas atribulações. Um dado interessante é a autora ter usado suas próprias referências biográficas ao compor a protagonista, em especial, suas experiências como preceptora.

 

Maria Firmina dos Reis e os seres humanos escravizados

Escultura de Maria Firmina dos ReisDepois de tantas leituras dessas britânicas incríveis, a pergunta suscitada foi: e as autoras nacionais dessa época, elas existiam? A resposta é sim. Inclusive, eram muito mais numerosas do que geralmente supomos.

Houve, porém, um apagamento da escrita das brasileiras dessa época, tornando-as hoje difícil de ser acessadas. Uma das poucas obras possíveis preservadas é “Úrsula” (1859), de Maria Firmina dos Reis, autora negra com feitos incríveis (professora, abolicionista, feminista), um romance que tem como uma das suas características mais interessantes a presença de personagens negros caracterizados de forma humana e não como meros subalternos do homem branco, invisíveis e até animalizados como era o comum naquele século.

A autora também escreveu contos nessa mesma linha, poemas e até canções. Depois de um lapso de quase um século a obra e biografia da autora foi finalmente resgatada, tendo destaque como leitura obrigatória nos vestibulares, uma forma viável de mantê-la em discussão.

 

Josefina Álvares de Azevedo e o voto feminino

Outra produção literária inesperadamente vanguardistas para uma mulher brasileira do século XIX é “O Voto Feminino” (1890), de Josefina Álvares de Azevedo.

retrato litografado de Josefina Álvares de Azevedo
“Reprodução do retrato litografado de Josefina Álvares de Azevedo, feito por L. Amaral, publicado em A Família, Número Especial, 1889.”

Trata-se de uma peça de teatro que panfleta pelo direito ao voto. A obra foi escrita sob o calor da implantação da república de modo a surgir o questionamento sobre quem iria poder votar.

Nessa época, o Brasil também atravessava a sua primeira onda feminista, e o movimento sufragista estava com força, no entanto a decisão foi de que apenas os homens teriam esse direito. O voto feminino só entraria em vigor nacionalmente em 1932, após décadas de luta.

 

O que aprendi lendo mulheres do século XIX

Desmentida a teoria de que as mulheres eram menos publicadas por não escreverem tanto ou por não serem tão talentosas como os homens, fui em busca de autoras com obras um pouco mais recentes. Mas isso será tema de um próximo artigo desta coluna. Continue acompanhando!

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