Zé Ramalho navega pelo cordel e repente em Beira-Mar
O galope à “Beira-Mar” de Zé Ramalho, uma bela amostra da influência do cordel e do repente em sua obra
Por Luis Alberto Costa
Colunista
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Após alcançar um relativo sucesso de público, com seu primeiro álbum solo, lançado em 1978, Zé Ramalho obteve uma modesta recepção pelos críticos da época, e alguns deles, conforme relatado em reportagem da Folha de S. Paulo, de 1980, chegaram a fazer comparações entre ele e Bob Dylan, ao que o próprio Zé respondeu: “É que eles não conheciam Otacílio Batista, um dos maiores repentistas brasileiros”. E não é pra menos, pois, de fato, é na cultura popular do nordeste brasileiro que estão as maiores influências do mestre Zé.
A proximidade entre a literatura de cordel e o repente é bastante perceptível e largamente demonstrada, em razão de ambas as formas de expressão artística se utilizarem dos mesmos esquemas métricos na composição dos versos. O que pouco se nota, entretanto, é que muitos compositores de outros gêneros musicais brasileiros também se utilizam das formas e estruturas de versos da cantoria e do cordel, dentre os quais Zé Ramalho é, sem sombra de dúvida, um dos mais importantes.
Zé Ramalho é um artista de variadas influências. Além da forte ligação com o repente, suas composições têm traços que vão do rock e do blues ao coco e baião, do surrealismo à crítica social, do psicodelismo ao aboio dos vaqueiros, de Luiz Gonzaga a Bob Dylan (sim, nesse ponto, os críticos estavam certos), enfim, na obra do mestre Zé há tudo isso e um pouco mais.
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Nascido em Brejo do Cruz, na Paraíba, Zé Ramalho iniciou sua carreira já no começo dos anos 1970, mas veio a se destacar nacionalmente no ano de 1978, com um álbum sensacional, que, embora na época não tenha alcançado o merecido reconhecimento, trouxe a público alguns clássicos da música brasileira, como Avohai, Vila do Sossego e Chão de Giz.
Já o álbum seguinte, A Peleja do Diabo com o Dono do Céu, lançado em 1979, obteve enorme sucesso de público e o devido reconhecimento da crítica. Faixas como “Admirável gado novo” e “Frevo mulher” fizeram sucesso estrondoso. Esse espetacular álbum traz em sua quarta faixa a canção “Beira-Mar”, um formidávelexemplar do cancioneiro nordestino, com as influências do inconfundível estilo dos cantadores e versos cheios de alegorias, simbolismos e frases impactantes, escritos em forma de galope à beira-mar, uma modalidade de cantoria criada pelo repentista cearense Zé Pretinho, a partir de algumas modificações do “martelo agalopado”.
Modalidades do repente
Aqui cabe uma pequena explicação sobre as modalidades do repente, que se referem aos diversos arranjos na métrica das composições, a partir de combinações específicas de sílabas, versos, estrofes e esquemas de rimas, que foram sendo desenvolvidos ao longo da história do repente e do cordel.
Assim, temos as diferentes modalidades de poemas, como a parcela, a quadra, a sextilha, a setilha, as oitavas ou quadrão, as décimas, o martelo agalopado e galope à beira-mar, cada uma com suas regras específicas, as quais são seguidas rigidamente pelos poetas na composição de seus versos, inclusive nos improvisos do repente.
O galope à beira-mar, portanto, mantém o esquema de rimas usual no martelo agalopado, que é o ABBAACCDDC, e tem também a estrutura de estrofes de dez versos (décimas), mas seus versos são de onze sílabas (hendecassílabos), com o ritmo de sílabas tônicas nas posições 2, 5, 8 e 11, de cada verso. Essa rígida estrutura dos acentos gera um ritmo bem forte e definido (tatá, tatatá, tatatá, tatatá, tatá, tatatá…), semelhante ao som de um galope.
Quanto à temática, o galope traz a exigência de que o último verso termine com a expressão “beira do mar”, ou pelo menos com a palavra “mar”, sendo preferível terminar com “galope na beira do mar”.
Zé Ramalho realiza magistralmente o formato do galope, aplicando com precisão a estrutura rítmica e o esquema de rimas, com bastante intensidade na acentuação métrica, dando destaque ao ritmo agalopado. Nos versos, ele aborda a temática dos oceanos, do mundo marinho, da vida e morte nos mares, com intensas descrições de paisagens, metáforas inusitadas e alegorias fantásticas. Abaixo, temos o texto da canção, com o esquema de rimas e a divisão silábica sendo demonstrada na primeira estrofe, ressaltando bem o ritmo.
Euen|ten|do| a| noi|te| co|mo-um|o|ce|ano – A
Que| ba|nha| de| som|bras| o|mun|do| de| sol – B
Au|ro|ra|que| lu|ta| por| um| ar|re|bol – B
De| co|res| vi|bran|tes| e| ar| so|be|rano – A
Um| o|lho| que| mi|ra| nun|ca|o| en|gano – A
Du|ran|te o|ins|tan|te| que| vou| con|tem|plar – C
A|lém|, mui|to a|lém| on|de| que|ro|che|gar – C
Ca|in|do| a| noi|te|me| lan|ço| no| mundo – D
A|lém|do| li|mi|te| do| va|le| pro|fundo – D
Que| sem|pre| co|me|ça| na| bei|ra|do| mar – C
Por dentro das águas há quadros e sonhos / E coisas que sonham o mundo dos vivos
Há peixes milagrosos, insetos nocivos / Paisagens abertas, desertos medonhos
Léguas cansativas, caminhos tristonhos/ Que fazem o homem se desenganar
Há peixes que lutam para se salvar / Daqueles que caçam num mar revoltoso
E outros que devoram com gênio assombroso / As vidas que caem na beira do mar
E até que a morte eu sinta chegando / Prossigo cantando, beijando o espaço
Além do cabelo que desembaraço / Invoco as águas a vir inundando
Pessoas e coisas que vão arrastando / Do meu pensamento já podem lavar
Ah, no peixe de asas eu quero voar / Sair do oceano de tez poluída
Cantar um galope fechando a ferida / Que só cicatriza na beira do mar
No arranjo (da versão original), a canção tem uma elaborada instrumentação que conta com violão, viola, baixo, percussões e um magnífico arranjo de cordas que nos remete à sonoridade da música erudita e cria uma atmosfera sonora dramática, deslumbrante, apoteótica e apocalíptica, ao mesmo tempo, gerando assim um intenso contraste com os sons de viola, violões e percussão.
Na introdução, a melodia das cordas ganha destaque, já com o acompanhamento de violões, viola e percussão, junto com vocalizações que lembram o aboio dos vaqueiros do sertão nordestino, criando uma atmosfera singular para a entrada dos versos da melodia principal, que traz bastante repetição de notas e poucos saltos melódicos, o que é bem característico do estilo dos cantadores e se adéqua muito bem ao ritmo do galope, ao mesmo tempo em que produz um efeito contrastante com os movimentos melódicos do arranjo de cordas.
Enquanto isso, a harmonia da canção apresenta uma estrutura de acordes e cadências que produzem um constante efeito de instabilidade tonal, com seguidas tensões harmônicas, o que leva a um clima de forte contraste entre as tensões do movimento harmônico e o aspecto modal das melodias do repente, com seus movimentos melódicos de pequena amplitude.
Zé Ramalho navega pelo cordel e repente em Beira-Mar
Essa interessante mistura de características do popular e do erudito, do moderno e do tradicional, do urbano e do rural, possibilita uma incrível amostra do que se pode encontrar na obra deste grande cantor e compositor paraibano.
Enfim, com tantas nuances e aspectos singulares, e tão rica mistura de influências, de recursos estilísticos, rítmicos e harmônicos, a canção Beira-Mar, de Zé Ramalho, deve ser apreciada com toda atenção possível.
Zé Ramalho navega pelo cordel e repente em Beira-Mar, texto de estreia de Luis Alberto Costa, colunista mensal na Expedição CoMMúsica.
Luis Alberto Costa é músico, compositor, eterno estudante de música, curioso e pesquisador em história da música brasileira.
Um belo texto para uma bela música!