Já não queremos que nos deem voz, vamos sair por aí gritando

Já não queremos que nos deem voz, vamos sair por aí gritando

Por: Michele Machado Fernandes

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Michele Fernandes

Seria pouco dizer que escrever é poder expressar a sua voz quando se fala em literatura escrita por mulheres. São séculos e séculos de silenciamento. Um dos pontos importantes revelados nas minhas pesquisas e leituras no submundo da literatura foi: as mulheres SEMPRE escreveram.

 

 

Nós sempre escrevemos

 

Um dos meus achados “arqueológicos” revela que o primeiro texto literário com autoria definida foi escrito por uma mulher. O seu nome era Enheduanna. Ela viveu no século XXIII a.C., na Mesopotâmia. Foi uma princesa, sacerdotisa, filósofa e poetisa. Esse caráter vanguardista não se encerra por aí. As contribuições das escritoras se prolongaram por séculos.

  • A Murasaki Shikibu é atribuída a autoria de “Genji Monogatari” ou “O Conto De Genji”, um livro de literatura clássica japonesa escrito no começo do século XI. É considerado o primeiro romance literário do mundo.
  • É polêmico afirmar, pois há uma lista de concorrentes na fila, mas parece haver um consenso de que “Frankenstein ou O Prometeu Moderno” (1818), de Mary Shelley, foi a primeira ficção científica, ou seja, a primeira obra a se valer da ciência para criar uma situação ficcional.

Também no âmbito da literatura nacional as mulheres inovaram com as suas contribuições.

  • Maria Firmina Dos Reis, autora de “Úrsula” (1859), foi a primeira escritora a publicar um romance no Brasil, foi a primeira escritora negra da América Latina e foi autora do primeiro romance abolicionista em língua portuguesa.
  • Nísia Floresta, além de ter sido a primeira feminista brasileira, foi a primeira mulher a publicar um livro com o seu nome como autora. É preciso lembrar que na sua época as mulheres costumavam publicar sob pseudônimos.
  • Emília Freitas foi a primeira brasileira a escrever uma fantasia com “A Rainha Do Ignoto” (1899).
  • Carolina Maria de Jesus foi a primeira escritora brasileira a registrar a vida na periferia, sendo ela parte dessa comunidade excluída.

Evidentemente, nenhuma delas foi devidamente valorizada. A maioria dos nomes citados precisou publicar sob pseudônimo. Grande parte delas foi esquecida com o passar dos tempos e, mesmo hoje, é difícil o acesso a algumas dessas obras. A crítica nunca foi justa com elas, exceto na atualidade e apenas quando dentro de determinados contextos, como sob o ponto de vista feminista.

Chamo a atenção, ainda, para o fato de que esse processo de apagamento histórico não é exclusivo às escritoras de séculos atrás. Recentemente, organizei uma lista de autoras brasileiras do século XX cuja obra merece mais destaque. Em menos de cem anos, elas já parecem estar caindo no esquecimento apesar da sua importância para a nossa literatura.

Alguns nomes são:

  • Patrícia Rehder Galvão (1910-1962): Conhecida como Pagu, foi escritora e jornalista. Militante comunista, teve destaque no movimento modernista iniciado em 1922. É autora de “Parque Industrial” (1933), primeiro romance proletário brasileiro e de “Autobiografia Precoce” (1940).
  • Elisa Lispector (1911-1989): Irmã de Clarice, Elisa compartilha de algumas características de linha introspectiva como a ruptura com o enredo factual, embora de forma menos acentuada. Alguns dos seus romances são: “Além da Fronteira” (1945) e “No Exílio” (1948).
  • Cassandra Rios (1932-2002): Aos 16 anos, publicou seu primeiro livro: “A Volúpia do Pecado” (1948) e se tornou a primeira autora nacional de romances eróticos voltados à homossexualidade feminina. Ninguém foi mais perseguida pelos censores da ditadura militar brasileira do que ela, tendo 36 dos seus 50 livros publicados censurados.

Se você já ouviu falar das três autoras mencionadas, isso se deve, em especial, ao fato de você já fazer parte de um grupo mais restrito de leitores(as) e, assim, vai mais a fundo nas suas escolhas de leituras. O leitor médio se restringe ao que a mídia divulga ou ao que a escola lista como leitura obrigatória. Infelizmente, tanto a indústria editorial como o academicismo também são cúmplices no apagamento das escritoras mesmo com as contribuições inegáveis à literatura trazidas por elas.

 

Reconstruindo o passado acabado

 

No famoso ensaio de Virginia Woolf, intitulado “Um Teto Todo Seu” (1929), a autora discorre ao longo das páginas sobre esse fato, vasculhando até mesmo o modus operandi pelo qual se dá o apagamento da escrita feminina.

Destaco algumas discussões que rendem dentro do contexto da obra[1]:

  • As fontes de informações sobre mulheres são todas sob o ponto de vista masculino e não chegam a um acordo entre si;
  • As mulheres são pobres já que por muito tempo não tinham direito a uma profissão, à posse de bens ou à administração do seu dinheiro;
  • As mulheres têm filhos e obrigações com o lar, o que consome o seu tempo e interfere na concentração durante o ato de escrever.

Justificando meticulosamente cada fator que leva à carência de dados sobre a história das mulheres e da ficção, Virginia Woolf cria personagens a fim de dar vida aos seus argumentos desprovidos de referências mais científicas.

A ficcionalização de mais destaque, no meu ponto de vista, foi a da hipotética irmã de Shakespeare, tão talentosa quanto o irmão, criada dentro de rígidos padrões impostos às mulheres. Com ela, imaginamos o que teria acontecido ao se lançar ao seu sonho de viver do teatro saindo de casa e tentando reproduzir os mesmos passos que levaram o irmão ao sucesso.

O fato de as mulheres precisarem de um espaço privado e de uma renda própria são importantes conclusões dessa obra e adiantam importantes pautas feministas como a emancipação e o empoderamento feminino.

Vejo esse livro como uma verdadeira tese, pois desvenda a história das mulheres escritoras (ou não), explicando por que passamos por séculos sem sermos citadas como agentes na literatura (e nem em outras artes ou profissões) e quais as saídas para promovermos uma reviravolta. Virginia, portanto, de certa forma, reescreve o passado apagado pelos homens (responsáveis por fazer o seu registro). O próprio livro é, assim, uma prova da necessidade de as mulheres contarem os fatos sob o seu próprio ponto de vista.

 

Mordida

 

Para encerrar esse artigo, quero lembrar e até mesmo indicar um conto meu presente na coletânea da qual faço parte: “De Corpo Inteiras”, publicado pelo Coletivo Escreviventes.

O título do conto é “Mordida” e narra a história de Fernanda, uma dona de casa vítima de violência doméstica. A protagonista vem de uma história marcada pela agressividade paterna experimentada em sua infância, apresentada no enredo por meio de flashback. O pai oprime a menina impedindo as suas descobertas infantis. Adulta, Fernanda vem do interior para a cidade, em um movimento que marca a luta da personagem por uma mudança. Porém, acaba conhecendo Jorge enquanto trabalha em um bar. Um detalhe importante sobre esse marido é que ele apaga a história real de Fernanda, posicionando-se como o herói responsável por tirá-la da prostituição, profissão de fato nunca exercida por ela. Outro fato relevante no enredo é sobre Fernanda não poder exercer o seu tão desejado vegetarianismo em função da opressão do marido, que incide até mesmo sobre a alimentação da mulher. Ela se fecha cada vez mais em si mesma ao ponto de replicar no próprio corpo a violência exercida pelo marido: ela morde a si mesma em um ato de automutilação. Sem ter para onde correr ou como se defender, um dia Fernanda protagoniza uma reviravolta na sua vida, uma representação simbólica da ruptura com o patriarcado. Sem dar spoilers, encerro essa indicação de leitura com a frase final do conto, uma das mais citadas pelas minhas leitoras entre tudo que já escrevi:

“Os gritos dela nunca eram ouvidos, mas os dele sim.”

A trajetória de Fernanda se assemelha ao processo experimentado por muitas escritoras. O medo de mostrar a escrita faz muitas autoras fecharem seus textos dentro das suas gavetas. É preciso superar o temor da crítica, autorizar-se a entrar em um espaços historicamente ocupado por homens e abrir o seu próprio caminho dentro das vias editoriais disponíveis, seja pela autopublicação ou por editoras e revistas que incentivam a presença da mulher na literatura. Nosso plot twist, enfim, é gerar uma ruptura com o patriarcado e nos tornarmos protagonistas em nossas histórias e em nosso mundo.

Já não queremos que nos deem voz, vamos sair por aí gritando. Nossos gritos não apenas serão ouvidos, mas repercutirão pela história.

 

Este artigo é a primeira parte de uma série relacionada ao projeto “O Que Contam as Mulheres?”

Está fazendo um ano que anunciei um projeto intitulado “O que contam as mulheres?”, idealizado a partir da minha curiosidade sobre a literatura de autoria feminina. Com base em minhas anotações pessoais, li, desde meados de 2019[2], cerca de cem obras escritas por mulheres, nascidas em mais de vinte países diferentes, mas sobretudo as brasileiras. Os gêneros das obras lidas foram extremamente heterogêneos. A data da primeira publicação de cada livro começa no século XIX e a quantidade vai se intensificando conforme se aproxima da contemporaneidade por razões óbvias, as mulheres ainda estão consolidando o seu espaço na literatura. Os meus resultados também têm a influência da minha participação no Coletivo Escreviventes em que não apenas participo como autora, mas também posso acompanhar a genética dos contos e poemas elaborados dentro do coletivo e me colocar a par de outras visões sobre a criação literária feminina. Minha metodologia é, portanto, ainda muito pessoal e carece de uma bibliografia mais aprofundada, mas acredito que como chamada a uma reflexão sobre o papel das mulheres na literatura esse artigo tem um valor inegável.

 

[1] Aqui a autora se refere às suas antecessoras, ou seja, autoras que vieram antes dela, anteriores ao início do século XX.

[2] 50 mulheres em 2020 (49% das leituras) e 40 mulheres em 2021 (59% das leituras).

Texto de Michele Machado Fernandes na coluna Conta Comigo, Expedição CoMMúsica.

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