Sabrina Gottschlisch: ancestralidade na literatura produzida por mulheres

Sabrina Gottschlisch: ancestralidade na literatura produzida por mulheres

Através de nós, de Sabrina Gottschlisch: ancestralidade na literatura produzida por mulheres é o assunto do artigo desta semana na coluna Conta Comigo!, de Michele Fernandes.

Uma estória que perpassa a história

Nas últimas décadas, as mulheres ingressaram de forma definitiva no cenário da literatura brasileira.

No entanto, há ainda muito trabalho a ser feito, há ainda muito o que ser contado sob o ponto de vista feminino. Nesse sentido, a obra de Sabrina Gottschlisch, “Através de nós”, chega, cheia de potência, com a finalidade de preencher não apenas os espaços tão necessários da protagonista mulher, da narradora e do ponto de vista feminino, explora também a história do Brasil a partir da imigração de italianos, vindos para ocupar a lacuna deixada após o fim da escravização de seres humanos (um modelo de trabalho ainda em transição na época), com acentuada marca do papel executado pelas mulheres.

É, assim, uma estória que perpassa a história.

Matilda, a narradora, retorna do exterior em função do falecimento da sua mãe, Mariana. Numa narrativa intercalada entre presente e passado, ela vai se lembrando não apenas da mãe, mas de toda a trajetória dos seus antepassados ao chegarem ao Brasil e de todo o esforço para consolidarem aqui o seu espaço, estabelecendo-se como uma família que carrega como importante marca a presença de muitas mulheres.

Dessa maneira, talvez a maioria dessas lembranças não tenham sido vivenciadas pela narradora, mas contadas oralmente de uma mulher para outra, até Matilda fazer o registro em o seu caderno.

A literatura que nos foi tirada

A necessidade de a narradora deixar documentada tal história é um artifício narrativo interessante por dois vieses: mostra para o leitor o motivo da escrita do livro; e, num plano mais feminista, dá voz a mulheres que, em seu tempo, não puderam deixar os seus registros.

Matilda, assim, recupera um silenciamento e apagamento de décadas e, juntamente, a história que nos foi negada, a literatura que nos foi tirada, representando o papel das mulheres da atualidade, muitas vezes, engajadas na tarefa de redescobrir as suas precursoras e matriarcas.

Nesse confronto entre presente e passado, temos uma abordagem muito bem embasada sob o ponto de vista político, histórico e social. Na vinda dos imigrantes, a narradora não poupa críticas às condições em que os seus antepassados chegaram às terras brasileiras, demonstrando vasto conhecimento do período retratado.

Na outra ponta desse fio de tempo, o presente também é alvo de críticas e reflexões. A obra situa-se no pós-pandemia, quando ainda se colhem as consequências dessa experiência coletiva, que, no cenário brasileiro, se fez ainda mais traumática em função do descaso de quem deveria governar e cuidar do nosso país.

A narradora, dessa forma, se mostra engajada e não poupa o leitor com denúncias de problemas próprios da nossa época.

Mariana é, na verdade, o produto de muitas outras mulheres

Embora a narradora seja Matilda, quem se destaca como protagonista, entre tantas mulheres marcantes, é a sua mãe Mariana, que vem como foco de sua análise, por meio das reminiscências da narradora.

Mariana é, na verdade, o produto de muitas outras mulheres: bisavó, avó, mãe, tias, primas, pois todas, de alguma forma, participaram da sua criação.

Essas mulheres representam uma grande gama de personagens com perfis extremamente heterogêneos, todas deixaram uma marca na vida de Mariana: a jovem que foi abusada pelo padrasto, a militante sequestrada e torturada pela ditadura militar, a tia bondosa oprimida por um relacionamento abusivo e por um filho traficante, a bisavó que precisou cuidar de um marido acamado por anos, até a avó, uma mulher que se entrega aos dogmas da igreja (talvez como forma de defesa nesta sociedade tão cruel com as mulheres), culminando na repressão da filha mais nova.

Mariana, assim, cresce de forma solitária, esquecida e reprimida. Demonstra, desde cedo, as questões psicológicas que viriam a lhe perturbar mais tarde como insônia e ansiedade, trazendo a saúde mental como mais uma importante discussão dentro deste enredo tão rico.

A personagem mostra um caráter ambíguo, apresentando, ao mesmo tempo, certa rebeldia e, apesar disso, a necessidade em agradar e seguir o padrão esperado. Casa-se, tem dois filhos, sendo Bento o mais velho e Matilda a caçula.

Ao criar os filhos, Mariana entende que eles precisam ir ao mundo, mas, como fez deles a sua principal missão de vida, sente-se infeliz com a sua ausência após vê-los independentes.

 

Esse fio que passa através de nós, mulheres

Sabrina Gottschlisch: ancestralidade na literatura produzida por mulheres

O romance possui como fio condutor o que de mais lindo poderia oferecer aos os seus leitores: mensagens de união, de empatia, de reflexão sobre a vida, sobre nosso tempo e tudo o que nos leva a chegar aonde estamos, com o papel feminino em evidência.

Nessa trama familiar, na qual as mulheres são o destaque, seria difícil não identificar uma tia ou uma avó, que nos foi próxima, ou ainda, enxergar a nós mesmas.

Esse fio que passa através de nós, mulheres, como forma de nos fortalecermos e, assim, conseguirmos nos desfazer nas amarras do patriarcado.

Sabrina Gottschlisch, é escritora paulista, feminista, historiadora, professora, mãe, participante de clubes de leitura e escrita. Em 2020, lançou o seu primeiro e-book independente, “Mãe de Atleta”.

No mesmo ano, teve um texto publicado na coletânea “Cartas de uma Pandemia”, da Editora Claraboia.

Em 2021, teve textos selecionados no prêmio Off Flip nas categorias contos e crônicas, entre outras antologias, e, em 2022, lançou o romance juvenil “Que Sorte a Minha”, na Bienal de São Paulo.

O livro “Através de Nós” foi contemplado pelo Proac – Programa de Ação Cultural do Estado de São Paulo, projeto que visa “apoiar e patrocinar a renovação, o intercâmbio, a divulgação e a produção artística e cultural; preservar e difundir o patrimônio cultural material e imaterial do Estado; apoiar pesquisas e projetos de formação cultural, bem como a diversidade cultural; apoiar e patrocinar a preservação e a expansão dos espaços de circulação da produção cultural”.

A obra aqui analisada é um ótimo exemplo da importância que tais projetos tem para tirarmos a literatura de um lugar pouco tangível e tornar possível a novos autores e autoras publicarem obras de tanta significância como o trabalho de Sabrina Gottschlisch.

A obra pode ser adquirida junto à autora (IG: @sabrina_gottschlisch) ou diretamente no site da Editora Paraquedas (para acessar, clique em: https://www.lojadaclara.com.br/produto/atraves-de-nos-sabrina-gottschlisch.html ).

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