Cavando Ideias • Rolando parte 3

Cavando Ideias • Rolando parte 3

Cavando ideias • Rolando parte 3 integra uma sequência de quatro artigos da coluna de Silvia Ferreira Lima. Apresentamos a parte 3:

Janela na Pandemia. xilogravura de topo com matriz perdida, colorida, ciano, magenta, amarelo. Campinas SP. 2020, Silvia F Lima
Janela na Pandemia. xilogravura de topo com matriz perdida, colorida, ciano, magenta, amarelo. Campinas SP. 2020, Silvia F Lima

 

Depois de aprender a entrar e sair de novos corpos, deixando um corpo conhecido sem vida e mergulhando em outro que começa a se desenvolver. Esquecer da origem, das características diferenciadas, dos personagens, lugares e famílias de que fazia parte. Começamos a nos sentir como um quebra-cabeças cujas peças foram misturadas.

A cada novo caminho, no corpo de cada personagem, novidades apareciam em frente. Eu novamente curiose (já justifiquei este uso anteriormente), tratava de aprender e sentir-me inteirade com o ambiente ou a situação. Vou falar de uma delas agora, mesmo porque reencontrei em outra vida um conhecido. Só depois comecei a lembrar e entender quem ele era e o que fazia naquelas circunstâncias.

Minhas memórias são que eu vivia na China, um grande país oriental, com imensa população e costumes que não pareciam tão distantes do meu planeta de origem. Sim, minhas lembranças ora eram claras, ora nubladas, sem mostrar qualquer destino ou caminho a seguir. Sei que eu era um rapaz pequeno, baixinho, que desde cedo aprendera a calcar pedras de túmulos a fim de identificar as personagens, suas famílias e histórias que traziam à humanidade. Foi cavando e entalhando pedras de túmulos, guardadas quando se passava carvão em papel arroz, que um dia eu o encontrei.

Era um chinês abastado, que usava longas caudas e roupas preciosas. Caminhava com alguns servos que lhe seguravam a cadeira, o guarda-sol e faziam o mesmo com suas mulheres. Todos participavam de um séquito, afinal parecia o enterro do pai do rico chinês. Só me lembro que ele gostou de minha habilidade em cavar pedras de túmulos, pediu para os servos o deixarem o chão e se aproximou. Perguntou o meu nome de família, mas até onde eu sabia, eu era órfão. Não lembrava quando tinha chegado naquele cemitério. Fui ficando até que comecei a observar o trabalho dos escritores de túmulos e fui aprendendo com eles. O chinês poderoso olhou como eu era jovem e como era habilidoso e me ofereceu um serviço no seu negócio. O homem era dono de uma gráfica, onde cada trabalhador exercia uma atividade. Lá eram produzidos escritos reais e documentos que somente as nobres famílias conheciam. Em troca de minha vida de dedicação, ele me ofereceria casa e comida. Aceitei, porque eu vivia acomodado no cemitério mesmo. Só peguei uma pequena trouxa e disse adeus aos colegas.

Desde aquele dia, eu comecei a entalhar. Cortava árvores na vertical e na horizontal. E não era qualquer tipo de árvore que era cortada, apenas as mais duras, perfumadas e resistentes. Aprendi a reconhecer e distinguir cada árvore. Aprendi a fazer meus instrumentos de trabalho, aprendi a entalhar os pedaços de árvore. Bem, na realidade, na oficina eu apenas levava os pedaços de árvore e quando estes acabavam eu ia buscar com o marceneiro. Só que eu queria entender de tudo, logo eu ajudava o marceneiro escolhendo árvores e cortando.

Depois comecei a observar os entalhadores e quando sobrava algum pequeno pedaço de madeira, eu o entalhava sozinho, preparando uma pequena coleção do meu trabalho. Só que eu sempre fazia escondido, porque na oficina cada um tinha uma função definida e podíamos viver uma vida fazendo a mesma coisa. Como eu era um rapaz ágil e pequeno, observava os trabalhadores e vivia escondido. Foi assim que descobri que uma das mulheres do senhor levava homens diferentes para o seu quarto. Não era a primeira esposa, era justamente a mais nova e mais bonita, na minha opinião. Certa noite, ela me descobriu na penumbra do seu quarto, sabia o que eu tinha visto. Então, começou a me seguir para ter algo contra mim, até que viu os pedaços de madeira que eu entalhava escondido.

Ela adorou os pedaços e viu que eu era realmente talentoso. Admirou meu trabalho. Elogiou e levou um dos pedaços juntamente com ela. Neste momento uma de suas servas a seguia e sugeriu que a senhora me chantageasse. Eu juraria jamais falar sobre as aventuras da senhora, caso contrário, elas botariam fogo nas minha peças de madeira. Fiquei apavorado, afinal era tudo o que eu gostava, tudo o que eu tinha. Concordei prontamente.

Até que num dia, o entalhador principal sofreu um acidente e passou a precisar de ajuda. Justamente num momento  em que havia uma entrega para o rei da dinastia. Então, eu em silêncio, no meio da aflição do mestre, me ofereci para ajudar. Eu o convenci de que havia aprendido a fazer apenas de observação. E comecei a ajudar o entalhador. Meu mestre no final, ficou muito satisfeito e passou a me ensinar mais do que eu jamais imaginara aprender sobre o negócio. Passei de um simples ajudante ao entalhador mor da companhia. Ajudei meu mestre a ganhar muito dinheiro. Ele apenas sorria de satisfação e passou a me dar regalias.

Meu mestre não tinha filhos, apenas filhas. Por isso começou a cogitar meu futuro casamento com a terceira filha, uma vez que a primeira e a segunda já estavam casadas com ricos mercadores e negociantes. A terceira era a filha de sua esposa mais bela, que não gostou nada da ideia, muito menos do fato de que não tinha nada contra mim, enquanto que eu sabia dos segredos dela e ia me tornando braço direito de seu marido. Certa noite, sua serva me chamou correndo, aflita e preocupada, como se sua senhora estivesse doente e só eu pudesse ajudá-la. Inocente, eu fui correndo, mas quando cheguei lá, fui pego numa armadilha. Lembro que nesta noite conheci todas as carícias escondidas pelas maiores amantes da história. Acordei até com  dor de cabeça e muito cansado. Jogado no chão de casa. Não lembrava como tinha chegado até lá.

Nos meses seguintes, eu não me aproximei do senhor nem da senhora, com medo de mais alguma encrenca além da confusão que já tinha arrumado. E tinha uma ótima desculpa, o entalhe de uma peça de vinte metros de comprimento por quatro metros de altura. E vivia ali, só trabalhando. Até que a senhora apareceu grávida e sua serva me disse que o filho era meu. Não acreditei, mas tinha medo de que fosse verdade. Portanto, assim que terminei a peça com todos os seus detalhes e o bebê nasceu e foi consagrado, como único filho homem, o herdeiro da companhia. Eu resolvi ir embora deixando apenas um recado de despedida e agradecendo o tanto que tinha aprendido.

Como não podia carregar muita coisa, levei apenas algumas peças que eu entalhara, de tamanho pequeno e deixei o restante com o senhor. Parti com alguns viajantes para o ocidente onde eu pretendia vender minhas peças e continuar meu serviço de entalhador e impressor. Minha intenção era chegar à Gênova e Veneza, cidades italianas, que eu ouvira terem muito interesse nas gravuras impressas, que foi o que pude carregar na viagem, enroladas em pedaços ocos de bambu.

Post Cavando ideias • parte 2

Deixe um comentário

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.

Site Protection is enabled by using WP Site Protector from Exattosoft.com